segunda-feira, 22 de julho de 2013

Na mesa #2

Era terça-feira e o relógio estava próximo de marcar três horas naquela tarde de garoa. As cinco senhorinhas se apertavam na mesa para quatro pessoas. As taças de vinho, bebida escolhida no lugar das usuais xícaras de café, também disputavam espaço na mesinha. Não era nenhuma celebração especial, mas no começo do papo, quando uma delas comentou sobre uma visita recente ao médico em que ele lhe comentou sobre os benefícios cardíacos que uma taça de vinho poderia trazer, lhes pareceu que não seria uma má ideia investir em seus corações.

Aquele encontro era uma tradição do grupo que se conhecia fazia mais de vinte anos. Despretenciosamente, certa vez, uma delas sugeriu que se encontrassem mensalmente num mesmo horário e local. Nem precisariam se telefonar nem nada, bastava aparecer. Quem pudesse estar presente, estaria ali. O local escolhido foi aquele café. 

A tradição, que antes acontecia no primeiro sábado de cada mês, demorou para vingar. Sabe como é, era o dia para ficar com os filhos, curtir o marido, comprar alguma coisa para casa ou visitar os pais. Mas, com o passar dos anos os filhos cresceram, alguns casamentos acabaram, os pais se foram. Já com mais de 60 anos de idade, passaram a fazer o encontro nas tardes de terça-feira.

Entre um gole e outro do vinho, naquela tarde, falaram sobre algumas preocupações com os filhos, mostraram fotos dos netos em seus celulares e comentaram sobre algumas situações de antigamente. Carinhosamente, referiam-se a si mesmas se chamando de meninas, como sempre fizeram. Trocaram algumas dicas sobre Praga, já que uma delas passaria uns dias por lá no próximo mês. Lembraram de mais algumas situações de antigamente.

Algumas horas depois, se levantaram e se abraçaram uma a uma na despedida. Aquele abraço familiar, nostálgico. Decidiram que, naquele mês, não esperariam o próximo mês para se encontrar novamente.

domingo, 21 de julho de 2013

Na mesa #1

Em um café aconchegante, as mesas são cobertas por toalhas quadriculadas de dois tons de azul com branco. Uma delas fica especialmente situada no fundo do café. Se por um lado não tem o privilégio de ser banhada pela luz do sol que ilumina as que ficam mais próximas da porta, é compensada pelo delicioso cheiro de café por ficar do lado da máquina onde é preparado. É também a que está mais pertinho de uma vitrine recheada de doces coloridos. Tortinhas, bolos, macarrons, mil folhas, quindins. 

Dia após dia, ela acolhe diversos papos. São casais, famílias, colegas de trabalho, amigos. Por acaso, sentam-se exatamente naquela mesinha. Alguns passam rápido, outros passam um tempo. Tem quem venha fazer o café da manhã e quem busque se esquentar com uma xícara de cappucino no final da tarde. Quando vão, não deixam pista alguma. Provavelmente, nunca se conhecerão. Seus caminhos se cruzaram apenas por conta de um elemento: aquela mesa.

A partir de hoje, uma série de contos sobre quem passa por essa mesa começa aqui no Lentes Coloridas. Para serem identificados, sempre terão o mesmo título: Na mesa, como nesse post. Cada um será seguido de um número para ser diferenciado dos demais.

Amanhã, o primeiro deles estará por aqui. Tragam suas xícaras de café e venham fazer companhia para quem, por acaso, se sentar na mesa.

sexta-feira, 12 de julho de 2013

Aliança

Abriu a porta, entrou em casa e deu logo de cara com ela sentada no sofá. Estava apoiada em cima de um de seus pés com o controle remoto na mão apontado para a TV. Logo que o viu, deixou o controle de lado e o chamou para sentar do seu lado.

O barulho da TV lhe soava alto e o cheiro dela indicava que havia saído do banho a pouco. Passou o dia inteiro pensando na versão da história que contaria. Respirou fundo e antes que ela reparasse começou a falar.

Contou que foi sem querer, mas que tirou a aliança do dedo quando foi lavar a mão na padaria em que almoçou e que deve ter esquecido ela na pia. Explicou que se deu conta quando estava no caixa, mas que já era tarde demais, ela não estava mais onde havia deixado.

A expressão dela mudou. Franziu a testa e esticou a perna sobre a qual estava sentada. Começou a falar como se vírgulas não existissem, como se não fosse preciso tomar ar. Foi ficando vermelha conforme ia enumerando os motivos pelos quais não poderia acreditar naquela versão. A voz ia se misturando com as que vinham da TV que seguia ligada. Ele não conseguia se concentrar em nenhuma das duas falas.

Ele tentava argumentar, mas parecia que cada resposta que dava funcionava como mais combustível para ela. Ia emendando uma palavra na outra. Ela não respirava entre as frases. Ele não respirava de medo. Ela não acreditou nele. Mandou ele embora.

E foi assim que aquela noite terminou. Em um ponto da cidade, ela rolando sozinha na cama que era dos dois. Em outro, ele encarando o teto da casa do amigo deitado no sofá da sala. Em um terceiro, uma senhora sentada em sua poltrona sem conseguir dormir, pensando em como encontraria o dono da aliança que sua neta havia pegado na pia da padaria onde almoçaram naquela tarde.

quinta-feira, 4 de julho de 2013

Caleidoscópio

A realidade é vista de um único ponto.

A vista é um único ponto da realidade.

É vista de um único ponto a realidade.

A realidade é um ponto de vista único.

De um único ponto é vista a realidade.

sexta-feira, 28 de junho de 2013

Arroz

Como toda boa avó, ela fazia o melhor arroz do mundo. Era um arroz soltinho, branquinho e que deixava a casa toda com um cheiro delicioso. Tão saboroso que dava até dó do feijão. A vontade era mesmo de comer o arroz puro e deixar a mistura de lado. Difícil dizer se ela gostava mais de prepará-lo ou de ver os netos comendo com todo aquele gosto.

Com o tempo, o arroz da vovó foi ficando mais raro. Ela foi indo menos para a cozinha. Normalmente, a moça que trabalhava na casa dela preparava a refeição. Outras vezes, os filhos que se encarregavam de cozinhar.   Quando ela mesma fazia, era motivo de festa. Em geral, aliás, era em momentos de celebração. O tempo tinha feito a comida de todo dia virar prato de ocasião especial.

Nessa semana, ela veio almoçar em casa. Entre uma garfada e outra, comentamos que o arroz que a minha mãe tinha feito estava delicioso, mas que ainda não era como o arroz da vovó. Foi, então que ela disse:

- Nem lembro da última vez que fiz meu arroz. Qualquer dia desses, preciso ir para a cozinha preparar.

É engraçado isso que acontece conforme vamos ficando velhos. Percebi que ela havia esquecido em algum canto de seu caminho esse ritual de preparar o arroz. Mais ou menos da mesma forma que fazia, cada vez com mais frequência, com seus óculos. Vez ou outra, se via procurando por eles pela casa sem lembrar onde os tinha deixado. Mesmo os óculos tendo um papel muito importante na sua vida, não eram algo no que prestava atenção o tempo todo. E, então, num instante deixava eles por ai. Mas, justamente por precisar dos óculos, de repente lembrava e ia buscá-los. Tudo isso para, certamente, perdê-los novamente pela casa em breve.

No meio do trajeto da vida, vamos esquecendo coisas pequenas pelo caminho. E, então, de repente,  lembramos delas e decidimos buscar onde as deixamos, mesmo sabendo que vamos deixá-los novamente jájá. Acho que é ai que nos damos conta de como são grandes essas pequenas coisas da vida.

terça-feira, 25 de junho de 2013

Jazz

Naquela semana, todas as noites foram noites de jazz.

Por um lado, havia aquela base que dava suporte para todo o resto. Assim como o blues faz para o jazz, alguns manifestantes estiveram ali todos os dias para reivindicar a redução da tarifa do transporte público. Eram a base, as notas certeiras que ofereciam o ritmo para os demais sons que viriam se juntar a elas.

Por outro, havia quem viesse para improvisar. No lugar das clarinetas ou trompetes, os cartazes. E, a cada manifestação, uma surpresa sobre o som que fariam. Estava ali a criatividade de um músico de jazz. Nunca haviam ensaiado antes. Um, certamente, não poderia prever o que o outro ia reivindicar. Mas, criaram um lindo - ainda que não tão harmônico, - arranjo improvisado. Sem maestro nem nada. 

Exatamente como em consecutivos shows de jazz, nenhuma noite foi igual a outra. E nem precisava ser. Os sons eram diferentes, os focos dos músicos não eram os mesmos. Provavelmente, não teriam sido ouvidos tocando isoladamente. Mas, juntos não poderiam ser ignorados, mesmo com as notas meio embaralhadas.

A música faz isso com a gente. Faz a gente querer dançar. Não dá para explicar o que nos move. De repente, o corpo levanta da cadeira e quer sacudir. Às vezes, só sacudir os ossos, às vezes, sacudir todo um país.

sexta-feira, 14 de junho de 2013

Vínculo

Querido,

Você deve ter levado um susto quando viu meu nome na sua caixa de entrada. Imagino até a sua cara. Quer dizer, imagino a cara que faria quatro anos atrás. Já faz tanto tempo que vim para São Paulo que é difícil dizer se ainda levanta as sobrancelhas quando é surpreendido.

De lá para cá, nenhuma notícia sua. Confesso que não imaginei que o fim seria tão definitivo. Imaginei várias vezes você batendo na minha porta e dizendo que tinha se mudado para cá também. Hoje, anos depois, fico aliviada que não tenha feito isso.

A cidade não é fácil para quem acaba de chegar. Não tivemos um começo tranquilo e várias vezes pensei em voltar. Mas, assim como você o fez, ela foi me conquistando aos poucos. Foi igualzinho o seu jeito de me ganhar. Nunca perdi de vista os seus defeitos e o que me incomodava, mas as partes boas pareciam compensar. É bem verdade que a dinâmica é caótica por aqui, mas, de repente, até o cinza pareceu menos cruel aos meus olhos. E, assim, me rendi à vida pauslitana.

Passei por poucas e boas por aqui, mas ontem foi diferente. Você deve ter visto nos noticiários. A cidade ficou tensa. Tive medo e desejei estar com você. Um pouco egoísta até, eu sei, mas precisava te dizer. Junto com o medo, veio a raiva. Uma sensação de que a cidade fazia comigo o mesmo que você. Insistiu em me conquistar e quando criamos esse vínculo que temos hoje, colocou tudo em cheque. Quando percebi, me peguei justificando o que acontecia. Da mesma maneira que fazia com seus erros. 

Olha, não vou acabar esse e-mail dizendo que vou voltar. Não é sobre isso. O desfecho da minha história de amor com a cidade é diferente do que o da nossa. Alias, esse e-mail é sobre isso. Aprendi a ficar. Nessa cidade que parece querer que todo mundo vá, entendi a importância de ficar. Justo aqui, criei essa conexão. Desculpa se não tentei arrumar as coisas entre nós quando pude. Tenho vontade de fazer isso por aqui. Eu quero ver as coisas diferentes em São Paulo. 

Espero que quando vier me visitar, já tenha conseguido mudar algumas.

Se cuida.

Beijos,

Alice.

terça-feira, 4 de junho de 2013

Marionete

Seu palco era a calçada. Seu público os pedestres. O ingresso era de graça.

Ele não era muito velho, mas também não era do tipo que seria considerado jovem. Sua arte era milenar. Em um cenário que reproduzia a própria rua onde se apresentava, um boneco de marionete ganhava vida. 

Caminhava pela calçada, sentava no chão, caía na sarjeta. Cada dia era uma história, não necessariamente diferente. Alguns episódios se repetiam vez ou outra. Mas, na vida é assim também, não é mesmo? Tem coisa que acontece de vez em quando. Tem coisa que se repete sempre, como é o caso do próprio artista que todos os dias se apresenta na mesma calçada.

Essa não é a única coisa que eles, artista e marionete, têm em comum. Eles também vestem a mesma roupa. Sempre estão de suspensórios. Sempre caminhando pela mesma calçada - um da cidade, o outro da caixa. Costumam estar sérios. O boneco por ser de madeira, o artista por ser de verdade.

Por outro lado, tem a diferença que está nas cordinhas. Quem decide os passos da marionete é o artista. Aliás, ele que escolheu a cor de seus suspensórios idênticos, a rua onde se apresentariam a e caixa onde o colocaria.

As pessoas sempre param para ver as apresentações. Algumas deixam uma moeda. Essas recebem um agradecimento. Sempre, dos dois. Ambos se inclinam sobre os joelhos para falar obrigada. Difícil dizer para quem os pedestres estão entregando o dinheiro. Às vezes, vendo os dois vestindo a mesma roupa, até confude. Porque tem gente que se identifica mais com o artista e tem gente que, se pudesse, preferia levar a vida do boneco.

segunda-feira, 27 de maio de 2013

Guarda-chuva

Quando as gotas que caiam do céu já não podiam ser ignoradas, abriu o guarda-chuva. Era pequeno e amarelo. Apertou o passo e foi andando, com os olhos voltados para o chão.

Mentalmente amaldiçoava uns outros pedestres que pareciam não vê-lo. Esses que não sabiam conduzir guarda-chuva e, entre um intervalo e outro, esbarravam nele. Em sua cabeça, era sempre o esbarrado e nunca o que esbarrava.

O barulho das gotinhas caindo no guarda-chuva parecia ditar o ritmo de seus pensamentos. No seu universo pessoal chovia. Os pensamentos nasciam mal-humorados embalados pela trilha sonora composta pelos pingos. A necessidade de passar no super-mercado para rechear a geladeira que já estava vazia há dias, a conta do celular, o relatório que tinha que entregar, as constantes argumentações silenciosas para justificar sua razão no episódio daquela manhã. Todos regidos pelo barulho da chuva. Apenas eram interrompidos pelos encontrões nos demais pedestres. Esbravejava. Um pouco com quem esbarrava nele, um pouco com os próprios pensamentos.

Os olhos nos pés ainda. O som parecia ter sumido. Tinha se acostumado. Os pensamentos se emaranhavam nele mesmo. Pesados, como suas roupas molhadas. Confusos.

Estava tão ocupado com eles que nem percebeu que, agora, carregava o único guarda-chuva aberto na rua. Com os olhos focados nos seus pés e pensamentos, não percebeu que há umas 4 quadras atrás a chuva parou. Muito menos que, neste momento, inclusive, abriu o sol.

Algumas vezes, é difícil enxergar para além do nosso próprio guarda-chuva.

segunda-feira, 20 de maio de 2013

Brechó

Tem que ser usado. Esse é o requisito básico para que algo possa fazer parte de um brechó. Não importa se é calça, se é chapéu, enfeite, sapato, bolsa, quadro. Se tiver sido usado, está valendo. E se tudo ali foi usado, quer dizer que cada um dos itens experimentou uma separação. No final das contas, o brechó é essa estranha composição de episódios de separação seguidos de novos de reconciliação. Não com o mesmo dono, mas uma reconciliação.

Aquela era uma tarde de separações e reconciliações na vida dela. Levando duas sacolas, passava no brechó para vender algumas peças com as quais não queria mais ficar. Não eram as peças, era ela. Estava diferente e elas continuavam iguais, então não estava mais funcionando.

Apresentou uma a uma ao vendedor, combinou preços e depois aproveitou para passear pelas prateleiras e conhecer os itens que passariam a fazer companhia para as suas ex-coisas. Tinha tanta coisa linda. Como é que alguém poderia se desfazer delas? Pegou um moletom cinza e checou o preço. Decidiu levar. Azar de quem tinha deixado aquela belezinha escapar. Ao pagar, ficou imaginando o dono anterior. Ficou pensando nas histórias que o moletom já tinha vivido, os lugares nos quais havia estado e como tinha sido a separação.

Saiu da loja já vestindo ele. Logo na primeira esquina, com seu moletom novo, esbarrou em um velho amor. Ele vinha acompanhado de um novo alguém. Trocaram um cumprimento tímido que não dava pista alguma sobre a história que tinham vivido, sobre os lugares nos quais haviam estado e sobre como tinha sido a separação. Continuaram seus caminhos. Ela sem suas antigas coisas, mas com seu novo moletom. Ele com seu novo amor.

Aquela era uma tarde de separações e de reconciliações na vida dela. No fim das contas, todos as tarde são um pouquinho disso.

segunda-feira, 13 de maio de 2013

Pipoca

Todos os dias, antes do sinal tocar, a turma já sabe que a aula está chegando ao fim. Nem precisa de relógio na sala para a agitação dos alunos guardando seus materiais começar. Tudo por causa do pipoqueiro. Ele chega todos os dias no portão da escola no mesmo horário. O cheiro de pipoca quentinha invade a sala e funciona como o soar de um cuco. 

Instantes depois do sinal, já tem fila na frente do seu carrinho. Pipoca doce, pipoca salgada, branca, rosa. Pipoca sendo vendida, pipoca sendo preparada. O carrinho nunca está vazio. Assim como o cantinho do pipoqueiro. Sempre ele está lá.

Nunca ninguém parou para pensar da onde ele vem. Será que mora ali perto? Deve ser! Dificilmente, ele conseguiria vir com o carrinho dele de muito longe. Imagine só, ele dentro de um ônibus com seu carrinho. Não ia funcionar. 

Nunca ninguém parou para pensar no motivo pelo qual ele sempre retorna para aquele ponto. É bem verdade que os clientes esperam ele por lá todos os dias. Mas, compradores de pipoca tem em qualquer escola, porta de metrô ou até de empresa. Poderia muito bem mudar de freguesia.

Ele mesmo nunca se perguntou isso. Nem nunca se deu conta do privilégio que tem de escolher se vai voltar ou não. Sua vida dentro de um carrinho, sobre rodas que permitem conduzí-la para qualquer lugar. Mas, em qualquer lugar, ele não seria o pipoqueiro que anuncia o final da aula. Sua pipoca seria pipoca e não cheiro de fim de aula, nem gostinho de volta para casa. E isso ele não quer. 

Que nem o cuco que só faz sentido se for parte da estrutura do relógio, ele só sente que faz sentido se for naquela esquina. E, por isso, ele sempre volta.

segunda-feira, 6 de maio de 2013

Especial dia das mães

Dia das mães é dia de amor. 

Para celebrar esse amor, o Lentes Coloridas fez uma parceria com a linda loja de presentes Graviola - www.graviola.art.br - e com a amiga e super artista Beatriz Bouskela. Juntas, criamos 3 cartões para rechear essa data de ainda mais sentimentos gostosos. Cada um deles traz uma ilustração exclusiva feita pela Bia e um conto aqui do Lentes Coloridas escrito especialmente para essa ocasião! Nos três posts abaixo, você pode conferir os textos e suas respectivas ilustrações! 

Gostou? Então, para comprar um para sua mãe, aqui vão algumas opções:

1. Você pode me deixar um comentário por aqui com seu nome, contato por e-mail e qual cartão gostou mais;
2. Você pode escrever uma mensagem na Fanpage do Lentes Coloridas com essas informações (http://www.facebook.com/bloglentescoloridas);
3. Você pode comprar pela querida loja Graviola ( http://www.graviola.art.br/postal-dia-das-maes )

Cada um deles custa R$ 15,00 e será impresso em um estilo parecido com um cartão postal, a ilustração linda de um lado e o texto do outro!

Beijos e boa semana para todos!

Memórias - Especial dia das mães


Estranho pensar que há uma época de nossas vidas da qual não temos memórias. Aparentemente, não há muito consenso sobre isso. Alguns pesquisadores dizem que as pessoas começam a se lembrar dos fatos que vivenciaram desde quando têm 1 ano. Outros afirmam que leva mais tempo, pois os ocorridos apenas ficam marcados em nossa mente quando completamos o segundo ano de vida.

Se dependesse de nossos cérebros, não teríamos contato algum com muitas das nossas memórias mais antigas. A primeira palavra, a primeira refeição, o primeiro aniversário, o primeiro dente. Tudo isso estaria perdido, solto no tempo, desconectado de nós. Mas, não está. Em muitos casos, por causa dela, que dá sentido a essas memórias e trata de registrá-las cuidadosamente, nossa mãe.

Como que num passe de mágica, elas fazem todas as pesquisas e teorias sobre a memória cairem por terra. Nossas mães são, desde o primeiro dia, as nossas lembranças. Guardam cada acontecimento nosso tão vivo dentro delas que ao compartilhar são capazes de criar a sensação de que lembramos de cada episódio narrado. Quando falam para o filho sobre a primeira vez que deu um sorriso ou que disse uma palavra, por exemplo, parecem transportá-lo no tempo para diante daquela cena. E, então, pronto. A história vira lembrança. Ou a lembrança vira história, a nossa história. Nem os pesquisadores podem dizer muito bem ao certo.

Não há nada tão pessoal quanto a nossa memória. Apenas uma coisa: a missão de ser guardiã da memória de alguém que ainda não pode lembrar. Cuidar de cada uma das recordações com carinho, transformá-las em álbuns de fotografias, em vídeos – alguns ainda em VHS -, em noites de histórias, em brinquedos guardados, em desenhos enquadrados. Elas não perdem nada. E, assim, se tornam a eterna conexão entre nosso começo, nosso meio e fim.

Mundo encantado - Especial dia das mães


Não eram raras as tardes de domingo em que delicadamente sentava-se na frente da mãe que assistia à algum filme ou lia uma revista qualquer e a encarava. Ficava em silêncio, até que ela a reparasse. Às vezes, levava alguns minutos. Então, quando os olhares se encontravam, abria aquele sorriso pidão que ambas sabiam muito bem o que queria dizer.

Sem dizer nenhuma palavra, a mãe levantava e ia junto com a filha para perto do armário. A menina sorria como se estivesse diante de algum mundo encantado, desses que apareciam nas histórias que ouvia antes de dormir. Esticava o bracinho e apontava para os pares de sapato com os saltos mais altos, os colares de perólas, os batons avermelhados e alguma saia que lhe serviria como vestido. No seu mundo encantado, a mãe era a princesa e ela queria, por alguns instantes, se sentir como tal.

Colocava um pé de cada sapato, saía caminhando toda desajeitada e ia mostrar para o pai. Voltava e se enchia de colares. Entre uma escolha e outra, tinha oportunidade de ouvir a história de quando a mãe ganhou cada uma das jóias. Foi assim que conheceu episódios sobre a festa de 15 anos da mãe ou do seu avô que era ourives. O batom todo borrado registrava um beijo sorridente de agradecimento no rosto da mãe depois que já tinha voltado a colocar o seu próprio pijama.

Hoje, anos depois, a filha virou mãe. Empresta as suas coisas para a sua pequena. Entre um colar e uma saia, aproveita para contar as histórias da sua mãe, agora avó. Um passeio rápido pelo tempo por meio daquele armário encantado. Ao olhar a sua filha vestida de gente grande, se pega muitas vezes pensando como gostaria, por alguns instantes, de caber nas suas roupinhas e terminar o dia com a cabeça deitada no colo da sua mãe ouvindo uma história sobre uma princesa em qualquer mundo encantado.

Vendinha - Especial dia das mães


Aquele era um dia no qual ele costumava ter muito trabalho. Apesar de ser domingo, acordava cedo, tomava um café reforçado e corria para sua vendinha. Fazia os últimos acertos na disposição dos produtos, levantava a porta verde e esperava a chegada do primeiro cliente. Não demorava muito e o movimento começava. Depois do primeiro, rapidamente já surgiam o segundo e o terceiro clientes.

Sua loja era de flores. E aquele domingo era de dia das mães. Apesar do grande fluxo de pessoas na loja, ele fazia questão de conversar com cada cliente que passava por ali e, depois de escolhido o arranjo, encontrar um espacinho para que escrevesse um cartão para acompanhar o buquê.

Passava todo tipo de gente por ali. Tinha pai que estava escolhendo as primeiras flores que a esposa ganharia na vida em um dia das mães. Como seus filhos ainda eram bebês, representavam eles que ainda não sabiam escolher o presente. Havia também os filhos que compravam dois ou três buquês. Contrariando a ideia de que só temos uma mãe, levavam rosas para suas mães e avós. Alguns, decidiam presentear inclusive suas sogras. Tinha filho único e filhos que vinham em bandos com os irmãos. Esses demoravam para escolher se a mãe gostaria mais do copo de leite ou das flores do campo. Alguns clientes gostavam de saber do significado das flores. Outros já chegavam e pediam logo as que sabiam ser as preferidas das suas mães.

Cada um desses visitantes levava as flores, mas deixava algo por ali. No fim do dia, quando não havia mais  ninguém, caminhava entre as prateleiras sentindo o espaço de sua pequenina venda preenchido pelo amor transbordado pelas dezenas de filhos que estiveram por ali. Misturado com o cheiro das flores, podia respirar um aroma de afeto espalhado por eles. Quase podia enxergar a energia positiva que pairava no ambiente. Aproveitou, então, para contribuir um pouquinho com essa atmosfera. Montou seu último arranjo. Doze rosas colombianas. Fechou a loja e foi encontrar a sua mãe. Ela foi presenteada com aquele arranjo que acumulava, entre seu laço de fita e as suas pétalas, esse astral delicioso de loja de flores em dia das mães.

segunda-feira, 29 de abril de 2013

Sede

Acordou com sede. Tomou um copo de leite e outro de água em seguida. Saiu para o trabalho com uma garrafinha na mão. Encheu ela algumas vezes ao longo do dia. Quanto mais água tomava, mais sede sentia.

Acordou de madrugada, levantou e foi para cozinha. Até o sono estava atrapalhado. Isso não costumava acontecer. Dificilmente, despertava ao longo da noite. Era uma sede estranha. Dessas que a gente não sabe do que é. Daquelas que tentamos matar com água, com suco, com refrigerante e nada. 

Da onde vinha essa sensação? Não era ressaca e nem consequência de algo diferente que havia comido. Deitou na cama e não conseguiu voltar a dormir. Tentava pensar em outra coisa, mas parecia não conseguir esquecer a sede. Não tinha pensamento que fosse mais forte do que aquele desejo.

Virava para um lado, virava para o outro, virava um copo de água. Nada. Irritada, desistiu de dormir. Sentou na cama. A hora devia beirar às três da madrugada. Pegou seu caderninho e lápis. Mergulhou nos seus desenhos. Junto com a sede, parecia estar transbordando criatividade. Nem viu a hora passar. Acordou na manhã seguinte com o despertador tocando e o caderninho aberto no colo. Tinha pegado no sono.

Foi só quando já estava indo para o trabalho que se deu conta de que a sede tinha acalmado E não era por conta dos copos de água que tomou. O que resolveu foi a dose de inspiração que se transformou nos inúmeros desenhos que produziu na madrugada. Tem sede que não é de água. É uma ânsia diferente. É sede de criar, de fazer e de acontecer.

quarta-feira, 24 de abril de 2013

Palavras caladas


Naquele país, ninguém falava. Ali, a voz não era necessária para se fazer entender. E a comunicação funcionava muito bem.

Todos os habitantes do país tinham sempre um caderninho e uma caneta à mão. Ao passar em frente a um restaurante, por exemplo, era possível ver as mesas cobertas de folhas e anotações. Um contava para o outro do seu dia, dos seus sentimentos e as novidades por meio da escrita. Vai ver que era por isso que havia menos desentendimentos. A nossa língua dá menos tempo para pensarmos do que as nossas mãos. Assim, as pessoas ponderavam mais sobre o que deviam dizer quando estavam com a caneta em punho.

Se contrapondo a escrita estavam as sobrancelhas. Se por um lado, ao escrever podia-se escolher com mais cuidado e calma o que se ia dizer, o movimento das sobrancelhas era tão ágil quanto o da palavra falada. Eram aqueles montinhos de pêlo sobre os olhos da onde, juntamente com as gargalhadas e lágrimas, transbordavam sua espontaniedade. Os habitantes do tal país conheciam melhor do que ninguém o poder das sobrancelhas.

Nesse país, não havia economia de sorrisos. Se fosse possível fazer uma equivalência, o sorriso seria o muito obrigado naquele país. Se alguém abria uma porta para um desconhecido, levantava no metrô para um senhorzinho se sentar ou pagava qualquer coisa com dinheiro trocado logo era recompensado com um sorriso. Não era algo que os pais precisavam ensinar para as crianças como o fazem aqui onde falamos. Não tinha essa história de palavrinhas mágicas. O sorriso era natural. Como não oferecer um diante das gentilezas dos demais habitantes?

Os abraços eram abundantes também. Sabe aquela sensação de ganhar um presente especial e não saber nem o que dizer para agradecer quem nos presenteou? Isso não existia. O negócio era logo apertar o outro e fazer ele se perder naqueles braços. A falta das palavras ditas fez com que se desenvolvesse tipos diferentes de abraço. Lá, os habitantes eram capazes de reconhecer o abraço que é para dar bom dia, daquele que desejava boa viagem do que era para pedir desculpas.

Outro dia, misteriosamente, as pessoas começaram a falar naquele lugar. Sabe do mais engraçado? Andam dizendo por ali que vão precisar inventar um dicionário todo novo para conseguir fazer o som falar tanto quanto consegue fazer o olhar.

segunda-feira, 22 de abril de 2013

De cara nova


Essa coisa de segunda-feira cinzenta não funciona aqui no Lentes Coloridas não! Para espantar a preguiça, começamos essa semana de cara nova e cheia de cor! Cara de quem já tem quase 50 posts e 5 meses de vida!


Obrigada por cada uma das visitas, dos comentários e do carinho! Obrigada também para a Nathelhou Productions que desenhou esse logo que tem tudo a ver com a gente!

Bora continuar vendo o mundo de um jeito colorido?

sexta-feira, 19 de abril de 2013

Certeza

E quando ele morreu tudo virou suas últimas palavras. Cada um dos queridos amigos ficava nostalgicamente retomando a última conversa, o último encontro e o último abraço. Falavam com carinho e lágrimas sobre os fatos que lembravam como sendo os derradeiros.

Muitos dos episódios que eram revividos vinham acompanhados de um comentário envolto em um sútil tom de premonição que era mais ou menos assim:

- Engraçado, parecia que ele sabia que ia morrer.

O jeito como disse que amava a irmã ao desligar a última ligação. A maneira como veio mostrar para a esposa aquela foto antiga do filho pequeno com os olhos cheios de saudades. O estranho desejo de comer brigadeirão, seu doce predileto, no último mês. A reconciliação com o pai com quem não falava fazia um tempo. A viagem para o Marrocos no semestre anterior que sempre foi um sonho. A tatuagem no braço, a coleção de discos de vinil, o presente para o filho. 

Por tudo isso, diziam que possivelmente ele sabia que ia morrer. Mas, afinal, o que fazemos na vida sem saber que vamos morrer? Por vezes, escondemos essa ideia por trás de um pensamento bom que invocamos rapidamente em nossas mentes para evitar o enfrentamento dela. Mas, sabemos. Na hora de escovar os dentes, na hora de embarcar no avião, na hora de uma entrevista de emprego, quando casamos, compramos um cachorro ou ligamos para reclamar da conexão da internet. Pode ser que não tão escancaradamente, mas sempre sabemos.

Foi quando alguém se deu conta disso que concluiram, deixando o enterro, que a vida, no fim das contas, é o conjunto dessas coisas que fazemos apesar de saber que vamos morrer. Perceberam que não se tratava do fato de que ele sabia que ia morrer e sim da certeza de que estava vivendo.

quinta-feira, 18 de abril de 2013

Andorinha

- Luiz? - disse como se a voz sorrisse ao telefone.

Apoiou o celular no ombro esquerdo enquanto procurava um guardanapo rabiscado dentro da bolsa. 

- Oi, aqui é a Luiza, sabe? A Luiza que trabalha com a Bárbara, tá lembrado? Isso mesmo, nos vimos naquele evento. Faz tempo, né? Que bom que o seu telefone continua o mesmo!

Acelerou a velocidade com que revirava a bolsa. O tom da voz suave e sorridente não combinava com os movimentos bruscos. Achou o papel.

- Estou te ligando para te convidar para falar em uma palestra que nós estamos organizando.

Abaixou os olhos para o guardanapo. Levou alguns segundos lendo as informações que passaria. A ligação ficou silenciosa.

- Oi, ainda tá ai? Então, vai ser no dia 23. Devem estar presentes umas 50 pessoas. Todas trabalham com TI também.

Levantou os olhos do guardanapo e olhou para frente. Um pássaro veio voando com as asas apressadas até que bateu na parede que via pela janela.

- É, isso mesmo! A sua fala teria uns 40 minutos, é suficiente?

O corpo castanho do passarinho caiu no chão. Se debateu uma ou duas vezes e parou. 

- Que ótimo que você pode vir! Claro, me passa seu e-mail que te mando as informações detalhadas. Só um segundinho.

O passarinho estava morto? Mãos na bolsa em busca de uma caneta.

- Pode falar! Ok, anotado. Nos falamos. Para você também! Beijos.

Desligou. Guardou o celular e encarou o defunto de andorinha no chão. Fitou ele por alguns instantes. Precisava ir. Mas, o que seria daquele passarinho? Olhou o relógio. Estava atrasada para reunião. Encarou o pássaro no chão mais uma vez. Poderia pegá-lo e enterrá-lo. Ou jogá-lo fora. O que se faz com um passarinho morto, afinal? Ninguém deve mesmo saber disso. Alguma hora, alguém resolveria. Talvez, alguém menos ocupado.

- Bárbara, ótimas notícias! Ele topou! - gritou voltando para o voo apressado e sem sentido que era a sua vida.

quarta-feira, 10 de abril de 2013

Flores

Um buquê de flores e o convite para imaginar quem irá, dentro de instantes, recebê-lo. O rapaz caminha aparentemente apressado na rua com aquele ramalhete todo enfeitado na mão. Na direção de quem será que ele está indo?

Pode ser que hoje seja aniversário da sua mãe. Possivelmente, esse seja um costume da família. Todo ano ele a presenteia com flores. A cada aniversário, uma flor diferente. Ou, então, pode ser que essa seja a primeira vez que o faça. De repente, se deu conta de que ela está ficando mais velha. Quantos aniversários mais será que vai ter? O tempo de comemorar eles e arrancar sorridos floridos dela é agora.

Talvez, seja para sua namorada. Pode ser uma data comemorativa na história do casal. Ou pode ser um presente simplesmente por estarem vivendo aquela história, desses que dizemos que é sem motivo especial, mas que, na verdade, vem transbordando razões para ser dado. Talvez, seja uma reconcialiação. As rosas vermelhas são a sua bandeira branca, seu pedido de trégua. No meio de tantas flores, seu orgulho se perdeu.

Há chance também de estar indo presentear alguém que não pode exatamente agradecer. Aquelas flores podem acabar, dentro de minutos, decorando algum túmulo de quem não está mais por aqui. Ao invés disso, podem terminar dentro de um vaso na sala como decoração para um jantar em que receberá seus amigos. Podem virar enfeite para o cabelo da irmã dele. Ou, ainda, pétalas espalhadas pela casa para um encontro com um amor.

São muitas possibilidades. E pensar que dentro de alguns dias essas flores já vão ter secado e morrido. As chances são tantas para uma vida tão curta das flores.

segunda-feira, 8 de abril de 2013

Poltrona de cinema

O filme parecia não evoluir. Sua trama era lenta. As cenas escuras como a sala de cinema cheia onde era transmitido. Os diálogos eram tão raros que era possível ouvir o som dos pacotes de pipoca sendo remexidos, do refrigerante quase no fim sendo perseguido no fundo do copo pelo canudo e, hora e outra, alguns sussurros entre os espectadores.

Ele olhou no relógio. Contando os trailers, tinham passado apenas 40 minutos desde que a sessão havia começado. Suspirou pensando na quantidade de minutos que estavam por vir. Talvez mais 1 hora? Talvez mais. Afundou a cabeça na cadeira procurando uma posição que, pelo menos, tornasse o resto daquela estada no cinema uma experiência confortável.

Nos instantes seguintes, reparou que muitos dos outros com quem dividia a sala pareciam tão agitados quanto ele. Possivelmente, buscavam aquele mesmo conforto que faria do resto do filme um tempo menos desagradável. Mas, se não estavam satisfeitos, por que não se levantavam e iam embora? Ora, todos são livres. Bastava pedir licença para quem estivesse nas cadeiras mais próximas do corredor e sair.

Alias, por que, então, ele mesmo não levantava e saía? É que vai que o filme melhorasse. E também, já havia mesmo gastado aqueles R$ 14,00 para entrar na sessão. Sem contar o valor que pagou pela pipoca e Coca-Cola. Ir embora assim significaria perder aquela quantidade de dinheiro. O melhor mesmo parecia ficar. Quem sabe se alguém levantasse ele não tomaria coragem também.

Os próximos 10 minutos foram ainda mais longos. Repassava os argumentos que usava para se convencer a ficar. Eles pareciam cada vez mais fracos. Mas, afinal, que mania é essa que temos de insistir em ficar quando podemos ir? Por que precisamos do aval alheio para tomar a atitude de deixar a sala? É como se o primeiro a levantar assegurasse aos demais que os chatos não são eles e sim o filme.

Então, analogamente, começou a perceber em quantas outras situações na sua vida insistia em filmes chatos ao invés de ir embora. Quando foi mesmo que esquecemos que podemos ir?

Respirou fundo, como se pegasse impulso para começar uma intensa corrida, pediu licença para a pessoa na cadeira do lado e deixou a sala de cinema. Quando fechou a porta atrás de si, se sentiu estranhamente livre.

quarta-feira, 3 de abril de 2013

Tempo


Desde quando aprendeu a ler as horas no relógio, uma pergunta começou a martelar em sua mente. Como um cuco que sistematicamente aparece de intervalo em intervalo, ele se pegava pensando sobre essa coisa chamada tempo. Os ponteiros se moviam como as peças de qualquer outra máquina o fazem. Isso não era prova suficiente para ele, antes mesmo de completar seus 10 anos, de que o tempo existia.

Falou de suas dúvidas com a professora. Com toda delicadeza, pediu para que ela lhe mostrasse o tempo. Ela, bastante experiente e cuidadosa, abriu o livro que trazia na sua bolsa em uma página que estava dividida em quatro partes. Em uma delas, havia um sol desenhado. Em seguida, uma flor cor-de-rosa. Depois, havia um gorro e um cachecol. E, por fim, uma árvore sem folhas. Falou das quatro estações do ano. Apresentou uma a uma e concluiu a resposta dizendo que essa era uma forma de ver o tempo. Com o passar dele, ano a ano, experimentamos cada uma dessas épocas. Pode ser que os meses sejam uma invenção do homem, mas as estações não o são. A cada três meses, independetemente de nossa vontade, elas se alternarão. São grandes indícios da passagem do tempo.

Ele ainda não estava convencido e, naquela noite, dirigiu a mesma pergunta ao pai. Sem hesitar, o pai pegou uma foto em que estavam os dois, pai e filho, no dia em que ele havia nascido. Lembrou a criança de que ele já havia sido daquele tamanho em que estava na foto. Os muitos centímetros a mais que tinha hoje eram sinais da passagem do tempo. Assim como os fios brancos que passavam a descolorir a cabelereira do pai.

No dia seguinte, foi com a mãe ao supermercado ainda pensativo. Para ele, esse era um de seus passeios preferidos. Adorava acompanhar a mãe por entre as prateleiras e escolher os produtos. Iam sempre no mesmo mercado e ele sabia onde encontrar cada coisinha. Naquela manhã, a tão conhecida loja estava diferente. Havia coelhos por todos os lados. Acima de suas cabeças, um céu todinho feito de chocolates. Ovos de todos os tamanhos e cores faziam seus olhos brilharem e a boca salivar. Visita a visita esperava aquele momento do ano chegar, a Páscoa. E, finalmente, ali ela estava.

Caminhando entre os chocolates se deu conta, de repente, do que afinal era o tempo. O tempo é essa espera por algo que amamos justamente por acontecer somente de tempos em tempos.

segunda-feira, 1 de abril de 2013

Guardanapo


Guardanapo é papel. Algumas vezes, pode ser pano também. Mas, na maioria das vezes, guardanapo é papel. Papel que limpa a boca e descansa no colo. Que sai borrado de batom ou de molho de tomate.


Mas, guardanapo é mais do que isso.

Tem vezes que guardanapo é caminho. Com uma caneta na mão, quem tem pressa desenha um mapa para quem procura algum lugar ou destino. Funciona que nem aqueles que os piratas usavam. Vai ver que no ponto de chegada exista algum tesouro também.

Guardanapo é jura de amor eterno. É estampa que combina com a toalha.

Guardanapo é passarinho É barquinho para quem espera e avião para o ansioso. Vira rosa e chapéu de marinheiro. Basta cair na mão de quem conhece origami ou dobraduras e pode ser o que quiser.

Guardanapo é cupido. É só escrever uma perguntinha e pedir para o garçom entregar para a moça bonita da mesa ao lado. Se vier com oito números na resposta, a flecha atingiu em cheio a mira. Dai é só dobrar ele com cuidado e deixar no bolso para quando a coragem bater apertar o send depois de digitar aquela combinação mágica no celular.

Guardanapo é passatempo. É obra de arte ou rascunho de desenho enquanto se espera o outro chegar. É ata de reunião em café.

Guardanapo é autógrafo de artista encontrado no hora do almoço. É lembrança daquele encontro, semanas depois quando encontrado no bolso do casaco.

No fim, guardanapo é papel. Mas, não papel de folha. É o papel que a gente der para ele.

segunda-feira, 25 de março de 2013

Casa de repouso

Todos os dias, conversas muito bem temperadas com uma pitada de nostalgia animavam a tal casa de repouso. Foi em um desses papos que faziam parecer que o tempo havia voado que eles se conheceram. Ela, viúva, três filhos e 81 anos. Ele, divorciado, nenhum filho e 79 anos. Um dia descobriram que tinham um conhecido em comum lá de Minas Gerais e pronto. O papo aconteceu e as afinidades ficaram claras.

Trocavam bilhetes apaixonados que eram entregues por outros senhorzinhos. Ele escrevia que não sabia como tinha vivido até ali sem conhecê-la. Ela respondia que nunca havia se sentido assim na vida. A timidez impedia que conversassem sem ser por suas cartinhas. 

Estavam todos jantando canja certa noite quando, como de costume, ela recebeu um bilhetinho dele que sentava do outro lado do refeitório. Nem reparou que o ambiente ficou em silêncio quando começou a desdobrar o papel. Por trás das dezenas de pares óculos que  recheavam o salão, olhos atentos a ela. Abriu o papel e encontrou a seguinte mensagem escrita com uma caligrafia tremida:

Quer casar comigo?

Por conta do nervosismo, encarava o frango desfiado que boiava em sua tigela com tal proximidade que quando recebeu o pedaço de guardanapo enviado por ela demorou a conseguir lê-lo. O calor da sopa havia embassado seus óculos, mas sem impedí-lo de ler a resposta igualmente tremida:

Sim.

E no lugar de viver o fim da vida decidiram viver o amor da vida.

sexta-feira, 22 de março de 2013

Na plataforma

Estação Consolação em pleno horário de almoço de uma terça-feira. As mulheres que circulam por ali andam em duplas ou em pequenos grupos. Uma ou outra aperta o passo em uma caminhada solitária. Algumas, aproveitam o intervalo no escritório para resolver alguma pendência. Vão comprar um presente para o amiguinho do filho que faz aniversário, fazer as unhas ou pagar alguma conta. Outras, vestidas em seus vestidinhos ou uniformes, voltam para a casa com a mochila nas costas para comer por lá depois das aulas da manhã. Tem também senhorinhas usando conjuntinhos de cores pastel ou alguma peça com estampa florida. 

Em comum, têm pouca coisa. Inclusive, parecem completamente diferentes. Cada uma transbordando um pouco do que é, sente e acredita por meio da forma de caminhar, falar e se vestir. Até que, de um instante para outro, se tornam profundamente parecidas. Isto acontece no momento em que o degrau da escada rolante em que ela estava toca o nível da estação onde se embarca nos trens. 

Ela caminha calma. Quer dizer, apenas se pode concluir isso pela velocidade de seu caminhar, afinal é impossível ver a sua expressão. Pode não ser calma, pode ser medo. Quem sabe ela esteja perdida. Não há como saber. O que parece é que vem de um mundo que não é o mundão de São Paulo. A única dica que se tem sobre ela é que seus olhos castanhos estão usando maquiagem. Além disso, não se pode perceber nada, nem se é jovem ou mais velha, se é loira ou morena, se está carregando um sorriso ou uma expressão mais séria.

Ela veste uma burca preta. Chama atenção dentre as demais mulheres que caminham por ali. De repente, faz parecer que todas aquelas mulheres tão diferentes entre si são iguais. Como se houvesse dois grupos, o dela e o das outras. Apenas como se houvesse, porque não há. No fim das contas são, naquele momento, uma única multidão, formada por mulheres esperando o trem para seguir na mesma direção. 

quarta-feira, 20 de março de 2013

Partida

Um enterro em um dia ensolarado. Como ela gostaria que fosse, diziam os amigos que não acreditavam que ela havia partido. É bem verdade que já tinha idade avançada, mas não precisava ter ido. Há quem vivesse mais. Recentemente, havia dado sinais de que o fim estava próximo. Ainda assim, resistia. A verdade é que os amigos imaginavam que este seria apenas mais um desses sustos que costumava dar. Mas, que ao final, sobreviveria. Infelizmente, dessa vez foi mesmo o final.

Fotógrafos estavam por todos os lados. Se não fosse o seu enterro, as pessoas poderiam encarar as suas presenças com as câmeras penduradas no pescoço como falta de respeito. Lugar de fotógrafo é em casamento e em festa de aniversário, poderiam esbravejar. Neste caso, fazia todo o sentido, mesmo que ela não fosse nenhuma celebridade. 

No lugar de flores, seu caixão foi coberto por caixinhas dos antigos filmes Kodak. Era impossível olhar para eles sem lembrar de seus tempos de maior vigor. Como ela parecia imortal naquela época. Ninguém imaginaria que aquele dia chegaria. Mas, acho que ninguém gosta mesmo de pensar neste tipo de momento, não é mesmo?

Com ela, estava indo embora a sua característica habilidade de capturar momentos únicos. Partia também a forma surpreendente como revelava às pessoas emoções vividas e o charme que trazia em sua nostalgia. Era o fim da leveza com que recheava os ambientes em que estava de lembranças queridas e a maneira como conseguia materializar recordações. Talvez ninguém mais consiga fazer isso tão bem como ela fez. 

Foi assim o dia em que morreu a foto revelada.

segunda-feira, 18 de março de 2013

Uma porta verde

Uma porta verde e pequenina instalada em uma calçada do centro de São Paulo. Não dizia nada para quem não pudesse ver através dela. Dizia muito para quem tivesse coragem de bater e descobrir o que ela guardava.

Toda manhã, um senhorzinho de boina destrancava ela e entrava. Então, ele só era visto novamente quando a noite começasse a cair. Por volta deste horário, o mesmo homem usando a mesma boina trancava a porta verde e ia embora. Durante o dia, algumas pessoas paravam diante da portinha, batiam nela e entravam. Dificilmente, ficavam mais do que uma hora por lá. Dentre os frequentadores do espaço guardado pela porta havia gente de todo tipo e idade, de jovens casais apaixonados até mães com seus filhos pequenos.

Desde o mês passado, o senhor de boina não apareceu. Algumas pessoas passaram por lá, bateram na porta e não foram atendidas. Os vizinhos, que nunca haviam percebido a existência da porta verde, começaram a notar o movimento. Foi ai que ficaram sabendo que ele havia morrido e se deram conta de que ninguém mais tinha a chave da portinha verde.

Daquele dia em diante, os vizinhos repararam na porta e passaram a criar as mais diversas teorias sobre o que havia ali atrás. Tinha quem falasse que era uma loja de coisas antigas, quem dissesse que era um centro espírita e aqueles que tinham certeza que o senhorzinho praticava alguma atividade criminosa por ali. A curiosidade era tanta que quem sempre esteve lado a lado e nunca se falou passou a agendar cafés ou se encontrar na calçada para compartilhar as suas hipóteses.

Aos poucos, o assunto se esgotou. Os papos sobre o que existiria por trás da porta foram diminuindo até deixarem de acontecer. Foram sendo substituídos por outros. Pouco a pouco, cada morador foi revelando para seus vizinhos o que existia por trás da sua porta. Afinal, não iriam esperar outros desaparecerem sem saber o que guardavam. Nunca descobriram o que o senhorzinho de boina havia deixado por ali em sua rua. Alias, isso nem importa mais. Afinal, seja lá o que houvesse atrás dela, a porta verde aproximou a vizinhança toda que estava logo à sua frente.

quarta-feira, 13 de março de 2013

Classificados

Vendo Mustang 97 em ótimas condições, segundo o dono - eu mesmo. Banco de couro onde uma noiva a caminho da Igreja já se sentou, minha filha. É possível encontrar esparramada um pouco da emoção vivida no dia por lá ainda. Talvez, mais transbordada por mim, pai da noiva, do que pela própria. Ar-condicionado. Quatro portas. Trava nas traseiras para evitar acidentes com crianças, como quase aconteceu no dia em que meu neto abriu ela em pleno movimento. Futuro comprador, recomendo usar, pois tomamos um baita susto naquela tarde. Se por acaso estiver se perguntando, a travessura lhe rendeu apenas uma dúzia de assinaturas dos coleguinhas no gesso que teve que usar no braço durante alguns dias, não me lembro quantos exatamente. Manutenção e revisões em dia. Terço pendurado no retrovisor, herança de meu avô português que o colocou ali com as próprias mãos dias antes de morrer. Diferentemente do que você, potencial comprador, deve estar imaginando, ele não era um homem religioso. Curioso ele ter pendurado aquela proteção. Parece que sabia que ia morrer. Como eu sou um homem supersticioso, preferi não tirar e, se me permite uma sugestão, eu o manteria ali. Farol traseiro direito levemente rachado - quase imperceptível - por conta de uma desatenção de meu filho. Aconteceu em uma daquelas ladeiras que ficam em Perdizes quando o sinal ficou verde. Talvez não tenha sido desatenção. Possivelmente, tenha mais a ver com a sua pouca prática. Era a segunda ou terceira vez que saía de carro depois de tirar a habilitação. Depois disso, perdi o medo de emprestar meu carro para ele. Se quer mais um conselho, entregue ele na mão de seus filhos também. Sente-se no banco de passageiro e relaxe mexendo no rádio. Estabilidade na estrada comprovada nas minhas incontáveis idas e vindas a Bauru, cidade onde minha mãe vive. Com o tanque cheio, um bom CD e uma parada para um café os quase 400 km eram percorridos com tranquilidade.

Valor a negociar. Aceito propostas. Tenho tido dificuldade para mensurar quanto esses deliciosos 16 anos da minha vida valem.

segunda-feira, 11 de março de 2013

Sapatos


Sapatos sociais, tênis de corrida, saltos altos, chinelos se cruzavam misturando a calma e a pressa que podem mover um paulistano em uma manhã de segunda-feira. A avenida era barulhenta o suficiente para ser impossível ouvir o som dos incontáveis passos que a cobriam. Bem ali, no meio daquele emaranhado de pernas, havia um rapaz deitado, dormindo na calçada.

Tão claramente visível e tão evidentemente ignorado ao mesmo tempo. Os pés, que pareciam fazer uma dança ensaiada, desviavam para não pisar nele, como o fariam se houvesse um buraco ou qualquer outro obstáculo em seu caminho. Alguns abaixavam os olhos e observavam de relance o homem adormecido. Outros, decerto já bem experientes na vida de cidade grande, desenvolveram uma habilidade que lhes permitia desviar sem nem ter que encará-lo diretamente.

O rapaz, que usava o braço como travesseiro, parecia mais uma extensão da calçada. Algo que sempre esteve ali, como um prédio ou telefone público. Imaginar sua história, da onde veio, o que fazia ali, os motivos pelos quais havia escolhido aquele canto para se deitar seria desagradável demais. E de desconfortável, já eram suficientes os saltos altos e binos ficos dos sapatos.

No final da manhã, o rapaz acordou, levantou-se e saiu andando. Passou a fazer parte da dança de pés que acontecia na avenida. Era o único que estava descalço, sentindo o calor absorvido pelo asfalto nas solas dos seus pés. Poderia ser um detalhe sem importância. Mas, não era. Afinal, desde quando os donos dos pés calçados perderam a capacidade de ver quem anda descalço?

sexta-feira, 8 de março de 2013

Balanço

É um balanço único, característico só delas, das mulheres. Com as suas singularidades, carregam essa habilidade consigo. A habilidade de balançar.

Balançam os cabelos. Longos ou curtos. Castanhos, loiros ou grisalhos. Cobertos por véus, presos em rabos de cavalo, sob bonés.

Balançam corações e têm os seus balançados também. Tem vezes que se fecham para balanço.

Balançam igual a um pêndulo que parece oscilar o tempo todo, de um extremo ao outro, sem cansar. Amam e odeiam o chefe. Vestem e desvestem a mesma roupa. Deixam o cabelo crescer para cortar e, então, cuidam para ele crescer. Juram de pés juntos que não vão segurar a mão da amiga quando aquele idiota com quem ela insiste em sair não ligar. E quando ele não liga, diz que avisou, mas lá está com o colo e todos os cuidados do mundo a postos. 

Balançam a caminho do mar, do trabalho ou da pista de dança.

Balançam paradigmas. Talvez isso seja o mais importante. Viraram eles de cabeça para baixo, do avesso. Não tem mais coisa de menina e coisa de menino. Conquistaram direitos e, com eles, criam coisas incríveis. São pintoras, mães, advogadas, presidentas, dona de casa. Elas que escolhem. E querem conquistar mais, porque nem tudo foi balançado ainda. E nem todas as coisas incríveis foram criadas ainda.

A habilidade de balançar é assim. E passa de mãe para a filha. E da filha para a neta. E de todas elas para o mundo, que pega embalo e balança também.

quarta-feira, 6 de março de 2013

Reencontro

Era um encontro. Ou melhor, um reencontro.

Alguns encontros fazem com que a gente se sinta como se houvesse borboletas em nosso estômago. Elas ficam lá voando sobre nossa expectativa em relação ao que vamos encontrar e o que a outra parte espera também daquele momento. Os reencontros, por sua vez - especialmente aqueles que acontecem depois de anos de distância -,   têm o poder de fazer essas borboletas se multiplicarem. Neste caso, elas sobrevoam o nosso receio de desconhecer o que já conhecíamos.

Especificamente neste reecontro, ele tinha medo de não reconhecê-la. Devia muito do que era a ela. Ela foi uma das suas principais referências. E se essas referências não fizessem mais sentido?  Juntos, tinham muita história. E se não houvesse mais aquela sorveteria, aquela sala de cinema que oferecia desconto de quarta, as flores nas janelas ou a feira de domingo? Por outro lado, sabia que não era o mesmo também. Tinha mudado, o que  significava que olharia para ela a partir de uma nova perspectiva. Ela também receberia alguém diferente daquele que havia partido anos atrás.

Enquanto esperava as malas diante da esteira, se deu conta do quanto havia levado dela. Desde o jeito de falar até as suas comidas preferidas. Será que ele ainda encontraria aquelas deliciosas panquecas? Ficou se esforçando para lembrar porque mesmo a havia abandonado. Quem sabe aquela visita passageira não se revertesse em algo definitivo. Quem sabe ela não o convenceria a ficar.

Respirou fundo, espantou as borboletas do seu estômago e tomou coragem para descobrir as respostas de suas dúvidas. Abriu a porta do aeroporto e reencontrou ela de braços abertos para recebê-lo, a cidade onde havia nascido.

segunda-feira, 4 de março de 2013

Previsões

Foi tão inesperado quanto o instante que separa a não-chuva da chuva. Foi mais  de repente do que o apertar dos olhos quando entram em um espaço ensolarado. Sem mais nem menos, passou a ser impossível prever o tempo. Em programas de TV, cientistas pediam paciência e meterologistas diziam que ainda não era possível explicar a causa do acontecimento, mas que em breve seria possível checar a variação climática diária novamente. 

O fato é que, sem saber se o dia seria quente ou frio, as pessoas passaram a sair de casa com todas os tipos de roupa dispostas em camadas. Assim, se o frio matinal persistisse durante a tarde, era só manter os casacos no corpo. Caso contrário, eles eram descartados e substituídos pelas roupas mais leves que antes estavam escondidas por de baixo deles. Nos dias quentes, logo cedo, era possível ver pessoas carregadas de casacos e cachecóis apertadas nos vagões do metrô.

Quem menos sofreu foram aqueles que trabalhavam de terno e gravata. Para esses, a previsão do tempo nunca fez diferença. Ainda que seguissem sentindo calor nos dias de altas temperaturas como antes, o simples fato de todos os demais humanos desconhecerem a forma como o clima se comportaria durante o dia conferiu um ar de vantagem a esta parcela de engravatados. Houve quem aderisse a esta vestimenta mesmo sem precisar.

Algumas pesquisas indicaram outras tendências surpreendentes. A falta de certeza de que choveria, aumentou a porcentagem de guarda-chuvas levados dentro da bolsa em relação aos dias em que havia sido possível prever que a chuva viria, por exemplo. Outro estudo apontou o aumento na procura por horóscopos. Já que a ciência não dava alguma pista do que aconteceria durante o dia, a astrologia passou a se mostrar como uma alternativa mesmo para os mais céticos.

Como a luz que volta depois de uma queda de energia, a previsão do tempo repentinamente passou a funcionar novamente. Tem quem descreva o ocorrido como um inusitado lembrete para nós, seres humanos, de que a capacidade de prever ou influenciar algum fenômeno externo não é sinônimo de controle, embora alguns tenham a impressão de que seja.  O que nos resta é torcer para que o ocorrido não se repita e por mais dias ensolarados.

sexta-feira, 1 de março de 2013

Busca

Enquanto caminhava para a sala dele, meio inclinada para o lado direito por conta da pesada sacola de livros que carregava neste ombro, imaginou o que encontraria. Móveis coloridos, souvenirs dos diversos países por onde passou e uma biblioteca particular. A porta se abriu. Foi surpreendida ao reparar que sua camisa azul turquesa era a única fonte de luz do ambiente monocromático.

Ele estava em uma poltrona cinza que parecia ter sido bege tempos atrás. Seu pés descansavam em um tapete encardido. Ele era seu escritor favorito. Já havia lido todos os seus livros, os quais carregava consigo para que fossem autografados um a um. Estava eufórica com a possibilidade de entrevistá-lo e esperando um papo super animado. Não foi nada disso. Suas respostas às perguntas dela sobre o que mais poderia querer atingir foram secas. Suas reações diante das declarações dela sobre o quanto admirava o seu trabalho foram tão apagadas quanto as cores da sua sala. Então, quando se fez um silêncio incômodo, ele decidiu inverter a lógica da conversa passando a fazer as perguntas:

- E você, o que quer atingir? - questionou sem mudar o tom de voz.

- Eu quero deixar um legado. Escrever algo tão importante que seja reconhecido com um daqueles ali - disse, apontando para um importante prêmio de literatura escondido atrás de uma pilha de papéis que conferia a sala um ar de cartório.

- Leva. É seu. Se é isso que é importante, fica com ele.

- Como? De forma alguma! Esse é o reconhecimento do seu trabalho! Jamais poderia tirá-lo daqui.

- Eu também já achei que realização era isso - disse ao se levantar sinalizando que a entrevista estava encerrada.

Tentou escrever a matéria sobre a conversa de todas as formas. Foi só quando notou que não era sobre literatura que haviam falado que encontrou o caminho para produzí-la. Naquela tarde, acabou escrevendo sobre felicidade.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Café

Um artista. Um conselheiro. Um caricaturista. Um inventor. Tudo isso junto, em uma pessoa só. Como se fosse um super-herói. No lugar de telas, muros ou papéis, ele faz sua arte em copos de café. 

Desde o ano passado, ele trabalha no Starbucks da Augusta. Ele prepara os cafés e os entrega aos clientes. Mas, não é só isso. Aliás, é muito mais do que isso. Enquanto prepara um frapuccino aqui, observa atentamente o próximo cliente da fila fazer o seu pedido no caixa ali. Esses instantes são sua inspiração. Desde o jeito como quem pede o café está vestido ou como seu cabelo está cortado, até a maneira como pega seu troco e encara o vendedor. 

Então, após preparar a bebida, ele pega sua caneta preta na mão para escrever o nome do cliente no copo. No Starbucks é assim, né? Seu café vem com seu nome. Parece que fica mais pessoal. Como se aquela bebida tivesse sido feita exclusivamente para você. Mas, para ele, a partir do momento em que o café de todo mundo vem com o seu respectivo nome, essa coisa de fazer você se sentir especial não funciona de forma tão única. Ele quer mudar isso. Afinal, é isso que ele faz: mocaccinos e as pessoas se sentirem especiais.

Além do nome, ele rapidamente faz alguma ilustração embaixo das letras. Às vezes, especialmente quando a casa está cheia e ele precisa ser ágil, faz um desenho pequenino. Um sol para o rapaz que chegou de óculos escuros, um ursinho para a garotinha de oito anos que está acompanhada da mãe - difícil dizer se é a filha ou a mãe que gostam mais do agrado. Já quando o movimento é menor, se dedica mais. Tem vezes que faz até uma caricatura do rosto da pessoa. Esses são os que fazem mais sucesso. Tem gente que volta e conta que guarda o desenho até hoje.

Outro dia, entrou uma mulher chorando. Pediu seu café chorando, foi pegar ele chorando. Quando foi recebê-lo, além de seu nome havia uma frase circulada por estrelas que dizia que tudo ia ficar bem. Pegou o café dando um sorriso salgado temperado pelas lágrimas.

Tem que ver a cara de alegria de quem recebe o copo. Várias vezes, perguntam quem fez o desenho para agradecer. Ele nunca se manifesta. Prefere assim. É a sua forma também de se sentir especial. Como um super-herói com identidade secreta que ronda os cafés na Augusta.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Gavetas e papéis

Como não havia suspeitado de nada? Estava ali, na cara dela o tempo todo. Só faltava pular e soltar gritinhos. Como não viu?

Os montinhos de papel dele pela casa e as gavetas repletas de documentos, fotos e contas sempre foram a regra. De repente, com a desculpa de que queria aproveitar o começo do ano para arrumar as coisas, passou a organizá-las. Os montinhos migraram para as lixeiras. As gavetas ficaram vagas. Decidia por se livrar da maioria das papeladas. Sempre havia deixado os papéis ali para caso precisasse saber onde procurar. Afinal o que tinha acontecido com o " caso precisasse"? Deve ter ido para algum daqueles sacos pretos junto com as contas e documentos velhos.

Nunca ia a médicos. Sabe como os homens são, não é mesmo? Mas, naquele mês decidiu visitar o oftamologista e o dentista. Dizia que precisava cuidar mais da saúde. Finalmente, havia percebido. Fazia anos que dizia isso para ele e ele nada de agendar as consultas. Quanta ingenuidade, ela havia acreditado que ele estava, de fato, querendo atualizar os graus dos óculos.

No dia em que ele foi embora, a surpresa dela durou apenas alguns instantes. Deveria ter agendado uma ida ao oculista para ela também. Quem sabe assim teria visto aquilo que passava diante dos seus olhos. Foi juntando as peças, as fichas foram caindo e ela reparou que a partida foi premeditada. Não aceitou. Ficou com raiva. Chorou. Hoje, ela só queria voltar para aqueles instantes de surpresa.