quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Dia da Saudade

Existe dia de tudo. Tem o dia do médico, da mãe, de todos os santos, da árvore, do índio, da criança, do leitor e até do fusca - acredite se quiser, dia 20 de janeiro é dia do fusca. Todos esses eu entendo. Faz sentido ter uma data para garantir que sejam reconhecidos e lembrados. É lá verdade que ninguém conhece muito bem todas essas datas tirando aqueles que ainda usam agendas de papel que vem com este tipo de lembrete para cada dia, mas tudo bem. O que eu não entendo é existir um dia da saudade.

Saudade não é coisa que precisa ser lembrada. Tem gente que sofre tanto de saudade de alguém que está longe, de um parente que morreu, de um namorado que separou que preferia até esquecer. Bom seria se pudéssemos escolher em quais dias a saudade ia bater. Já pensou? O rapaz acorda e olha no calendário, dia 30 de janeiro. Escrito em italíco está o lembrete: dia da saudade. Então, ele abre a porta do seu coração e deixa ela entrar. Lembra dela. Ou seriam delas - da saudade e da amada que partiu, da casa de infância onde morou, da macarronada da vó que já morreu? Depois, quando dá meia-noite, se despede e volta a viver sem saudades. Simples assim.

Saudade não é coisa que precisa ser reconhecida também. Ela é igual saber nadar para cachorro. Assim como os bichcinhos, parece que já nascemos sabendo como é. Ninguém nunca explicou para uma criança como é saudade. Igual o cachorro caindo em água fria, bastou o menino ficar longe da mãe para instintivamente sair nadando num marzão de saudade. Ele pode até não saber o que é aquilo que sente, mas sente.

Olha, espero que você não esteja me levando a mal. Longe de mim achar que a saudade não mereça um dia. De jeito nenhum! É que pra quem já amou, lembrou, viajou, separou, encontrou todos os dias saõ dias de saudade. É responsabilidade demais para um dia só ser o dia da saudade. Se toda a saudade do mundo ficasse concentrada só nele era capaz de até deslocar o eixo da Terra. E isso não queremos, porque só falta acabarmos com alguma estação do ano e inventarmos mais alguma coisa para nos fazer saudades. Não é nada disso. Este abaixo-assinado que estou pedindo para você assinar não é para acabar com o dia da saudade não. Na verdade, é para criar outros 364 no ano. Não faz mais sentido assim?

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Arco-íris

- Mãe, chuva e sol são contrários, né? A professora que falou.

- É sim, filha, por quê?

- Porque, mesmo sendo contrários, pode fazer chuva e sol ao mesmo tempo, certo?

- Certo, meu amor.

- E quando faz sol e chuva ao mesmo tempo, forma um arco-íris, não é?

- Exatamente, filha! Você entendeu tudo certinho!

- Então, eu posso dizer que arco-íris é o encontro de contrários?

- O que você quer dizer?

- Ué, que quando dois opostos acontecem ao mesmo tempo faz um arco-íris, não é? Por exemplo, a vovó é velhinha. Mas, quando ela brinca comigo de uma coisa de criança faz um arco-íris, não faz?

- Faz, filha? Onde?

- Não sei onde ele acontece, mas sei que deve aparecer em algum lugar. Sempre que eu vejo um arco-íris fico tentando imaginar qual foi o oposto que formou ele, sabe? Porque já teve vezes que eu vi um arco-íris e não tinha nem sol e nem chuva. Então, só pode ser porque algum contrário se encontrou em algum lugar do mundo! É tipo no primeiro dia de aula. Eu não consigo dormir direito. Fico em dúvida se é porque estou com medo da turma nova ou se é porque estou animada para encontrar meus amiguinhos, sabe? Não é uma sensação muito boa, na verdade. Mas, pelo menos forma um arco-íris.

A mãe ficou sem resposta. Queria dizer algo para a filha, mas não sabia exatamente o que era. Podia oferecer uma longa explicação sobre o fenômeno natural que formava o arco-íris. Mas, estragaria a importante descoberta da menina de que tudo bem ficarmos ambivalentes com sensações conflitantes ao mesmo tempo. Queria dizer que se sentia orgulhosa por sua sensibilidade. Não sabia como. Acabou dando um abraço na pequena. Um abraço desses que diz muito no seu silêncio. Desses que funciona como ponto de encontro de um contrário e forma um arco-íris por aí.

domingo, 27 de janeiro de 2013

Sinfonia

A música era o barulho que os vagões faziam ao deslizarem pelos trilhos. Quer dizer, esta era a música que todos podiam ouvir. Havia também as músicas tocadas pelos ipods, mas que apenas eram escutadas pelos respectivos donos dos aparelhos. Era raro passar alguém pela plataforma que não usasse fones nos ouvidos e curtisse a sua própria música. 

Entre uma melodia produzida por um trem e outra, um rapaz se instalou na plataforma. Com seus fones devidamente colocados, poucos notaram a sua chegada ainda que carregase uma grande caixa. Cuidadosamente, abriu a caixa. Como se fosse uma daquelas Mamuskas, sacou, primeiramente, uma caixinha menor de dentro dela que colocou aberta diante de seus pés. Voltou-se novamente a caixa maior e tirou um saxofone. Parecia antigo. Devia ter sido brilhante, agora era fosco. 

Começou a tocar. Sem maestro nem nada, logo afinou-se ao som que os trens faziam na sua sinfonia com os trilhos. Optou por um clássico: Garota de Ipanema. Sem caminho do mar nem nada, embalou o doce balanço de algumas moças e senhoras que por vezes caminhavam apressadas e por vezes se apoiavam em sua bengalas até o trem.

Pouco a pouco, as pessoas na plataforma tiravam os fones de seus ouvidos para ouvir o som que fazia. Vários deixavam algum moeda na caixa menor. Outros, abriam a carteira e depositavam notas mais graúdas. Alguns pés se juntavam a orquestra e, sem querer, passavam a sacudir no ritmo da música. É bem verdade que alguns tinham mais ritmo que outros, mas isso não parecia importar. Nem para os donos dos pés nem para os donos das mãos que batucavam nos livros que levavam.

Foi, então, que um rapaz vestido com um jaleco puxou a moça com quem estava de mãos dadas para perto de si e começou a dançar. Como se a plataforma fosse uma pista de dança, como se a música fosse uma valsa, ele a conduzia ao som do saxofone. Os pés e mãos que batucavam pararam por um instante. Viraram para o casal. Ele rodopiava ela, puxava de novo para perto do peito e rodava mais uma vez. O trem chegou. O rapaz do saxofone continuou. Um passo diferente aqui, um pisão no pé ali. Rodou ela de novo. O trem foi embora sem ninguém embarcar. Ao som do saxofone e seguindo a coreografia do casal, os passageiros decidiram, em um consenso silencioso para não interromper a música, esperar o próximo trem.

E foi assim a manhã em que a vida real teve trilha sonora.

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Propósito

Todo dia passa alguém por aqui, joga uma moedinha no poço e faz um desejo. Sempre foi assim e - espero não estar sendo otimista demais - sempre será. Não sei dizer quem começou com esta ideia, só sei que faz muito tempo. E não teve nem internet e nem Iphone que acabou com esta tradição. Ainda não inventaram aparelho nenhum eficiente como este poço para realizar desejos, viu?

Se por um lado o costume não mudou, confesso que o teor dos desejos está bem diferente. Quer dizer, tem uns que acho que nunca vão mudar mesmo. Sempre vai ter aqueles que pedem para encontrar o amor da sua vida, aqueles que já encontraram e pedem para se casar com ele - nessa categoria estão as mães que pedem para suas filhas casarem -, há quem peça para ter filhos e os que querem ficar ricos.

Recentemente, tenho notado alguns pedidos novos. Não tem sido incomum alguém jogar a moeda e não saber o que pedir. No fim, acabam pedindo felicidade ou paz. Coisas bem genéricas, entende? Sinto que a gente que vem até aqui está ficando cada vez mais em dúvida daquilo que quer para as suas  próprias vidas. Então, pedem alguma coisa que poderia servir para qualquer pessoa. E é engraçado, né? Porque se não sabe o que pedir, para que vai jogar a moedinha? Deixa o trocado para comprar uma bala ou coloca num porquinho. As pessoas ainda usam esses cofrinhos em formato de porco, não? Mas, então, antigamente as pessoas só jogavam a moedinha para pedir exatamente uma coisa que já tinham na cabeça, Hoje, parecem fazer uma aposta, um investimento na esperança. Acho que foi essa internet que causou isso. As pessoas têm opção demais e não sabem mais o que querem. Pode ser isso, viu?

Outra coisa que mudou foram os pedidos de emprego. Faz uns anos, o pessoal chegava e pedia para encontrar um emprego como advogado, como engenheiro, como eletricista e pronto. Atualmente, não. As pessoas não pedem para conseguir um trabalho, mas para descobrir qual é o trabalho da sua vida. Qual é mesmo a palavra que elas usam? É o contrário de sem querer. Elas dizem que não querem um emprego que faça com que vivam todos os dias fazendo coisas à toa, aleatoriamente. Ah sim, propósito. Tem um tantão de gente que pede para encontrar este tal de propósito.

Ai, ia só perguntar o seu desejo e acabei puxando assunto demais com o senhor, né? É que este é meu trabalho, ouvir o desejo de quem passa por aqui. Isto começou quando eu desejei encontrar o tal de propósito. Estava com um troco sobrando no bolso, coisa rara. Decidi jogar e pedir. Se tinha tanta gente pedindo, coisa ruim não ia ser, né? E não foi mesmo! Antes, eu vinha pro meu trabalho para cuidar desta grama. Eu era jardineiro daqui. Hoje, eu venho para cuidar desta grama e ouvir os desejos de quem caminha por ela. Sou jardineiro e colecionador de sonhos. Espero não ter atrasado o senhor com minha conversa. O senhor entende, né? Este é meu propósito.

Mas, então, o que o senhor vai desejar?

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Linearidade

Ele não tinha filmes preferidos, mas sim personagens preferidos. Podia ser que nem gostasse tanto do enredo ou do tema do filme em si, mas se apaixonava por algumas das pessoas que viviam aquela história. Quando descobria um novo personagem para chamar de favorito, chegava a ver o filme mais uma ou duas vezes passando para frente as cenas desinteressantes em que ele não aparecia.

Ele mesmo nunca havia identificado isso, mas o que existia em comum entre os seus personagens preferidos é que haviam feito escolhas que ele próprio tinha dificuldade de justificar ou entender. Em geral, tratavam-se de situações nas quais ele certamente teria agido de uma forma diferente. No começo, chegava a ficar incômodado com as escolhas ou atitudes do personagem. Passava, então, a se dedicar a entender os seus motivos. Era um exercício de empatia, de tentar exergar do lugar de alguém de outra idade, de outro sexo, de outro século, de outro país, de outra cultura, de outra família.

Estes personagens que despertavam seu interesse nunca saíam de filmes que dividiam seu elenco entre os que eram do bem e os que eram do mal. Esses nunca surpreendiam. Era fácil demais justificar as suas escolhas. Havia uma lógica que fazia deles personagens óbvios e previsíveis. Assim, não via graça.

Muitas vezes, não chegava a compreender as razões do personagem. Era comum o seu incômodo inicial não passar. Ainda assim, havia algo que encantava ele. Em suas sessões de análise, seu psicólogo já havia lhe dito, em mais de uma ocasião, que a condenação era um sentimento muito próximo da idealização. Secretamente, ele achava isso uma besteira, como todo o resto que ele falava. Estava tão preocupado pensando em como diria ao analista que deixaria a terapia que nunca notou este processo se reproduzindo na escolha que fazia de seus personagens favoritos.

A verdade é que, se fosse um filme, sua própia vida seria um faroeste no qual, em sua cabeça, ele era o mocinho e seu analista e sua ex-mulher eram os bandidos. As sinuosidades eram permitidas apenas para seus personagens. Ele sempre perseguindo a retidão, se culpando pelas encurvadas que dava em sua trajetória sem saber como justificá-las. Estava focado em seguir para um final feliz linearmente. É uma pena. Diferentemente do filme de seus personagens, o faroeste de sua vida nunca chegou ao clímax.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Cidade da Garoa

De pé dentro no metrô, com o seu celular na mão, ia lendo as postagens mais recentes no Facebook. Era um dia chuvoso e as pessoas se apertavam no vagão que parecia mais cheio do que o normal. Assim como a chuva não havia passado desapercebida ali dentro do metrô, onde os guarda-chuvas, cabelos e casacos molhados se esbarravam a todo instante, as postagens no Facebook giravam em torno disso. 

Vários dos seus amigos haviam postado alguma foto, usando o Instagram, do trânsito caótico que havia se formado em São Paulo. As imagens traziam vias tão congestionadas de carros que sentia um certo alívio de estar ali embaixo da terra no meio de um congestionamento só de pessoas. Outros de seus contatos da rede social postavam suas reclamações sobre o tempo que levavam para chegar nas suas casas.. As meninas se arrependiam por terem saído de sapatilha ou de vestidinho. No meio das publicações, deparou-se com um post que trazia uma imagem na qual se lia que a vida é muito curta para morar em São Paulo. Ascenou a cabeça positivamente, concordando com a frase lida.

Levantou os olhos do celular para checar em que estação estava. Faltava uma ainda. O seu olhar cruzou com o de um senhorzinho que estava sentado. Mesmo sendo muito mais velho, comovido provavelmente pelo tamanho da mochila que ela levava nas costas, gentilmente ofereceu o seu assento para ela. Ela agradeceu, dizendo que desceria na estação São Bento, a próxima.

Deixou o vagão sem saber qual saída da estação escolher. Perguntou para uma senhora por onde deveria seguir para ir ao edifício Martinelli. Muito atenciosa, a senhorinha se ofereceu para acompanhá-la até lá. Disse que amava a visão do prédio e que seria um prazer. Sairam da estação e foram surpreendidas por um sol de fim de tarde delicioso que aos poucos parecia secar o centro da cidade que estava todo molhado.

Ao se despedir da senhorinha, de frente ao edifício que buscava, concluiu que de fato a vida é muito curta para viver em São Paulo. Não porque viver ali seria desperdiçá-la, pelo contrário. Enquanto entregava seu RG para se identificar na recepção do prédio, concluiu que a vida era curta demais para experimentar as infinitas surpresas que a cidade é capaz de oferecer, como a gentileza do senhor do metrô, a companhia da moça até o prédio e o sol pós chuva que a esperava no centro, ali fora do metrô.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Acaso

- Quando alguém ganha na loteria. Quando uma pessoa perde um avião que, minutos depois, sofre um acidente. Quando duas pessoas conversando, sem querer, falam a mesma palavra simultaneamente. Quando você cruza com um conhecido em um país que fica no outro lado do mundo. Quando um para-quedas não abre. Quando duas pessoas que têm exatamente o mesmo nome e sobrenome se encontram. Quando você sonha com alguém que não vê faz tempo e encontra esta pessoa no dia seguinte. Quando duas pessoas têm a mesma tatuagem. Quando um casal se forma no metrô. Quando um filho nasce no dia do aniversário da sua mãe. Quando a pessoa sentada do seu lado na sala de espera está lendo o mesmo livro que você.

Nas últimas aulas, o professor de matemática começou a falar de probabilidade. Fazia anos que lecionava este conteúdo, mas nunca havia sido bombardeado com as perguntas que ela fazia. As chances de eventos como os imaginados por ela acontecerem eram dificéis de serem calculadas.

- Olha, professor, sei que o senhor tem mesmo que ensinar essas coisas e que elas têm lá sua utilidade. É só que sinto falta de alguns elementos nas suas equações. A lousa fica aí, cheia de letrinhas e de  sinais que se somam, mas nenhum deles representa o acaso, o destino, a sicronicidade. Vai ver que estes elementos aumentam a chance destes eventos acontecerem e devem ser considerados no cálculo. Vai ver que não e que na verdade eles são um produto lindo da matemática e devem estar no lado do resultado da equação.

O professor teve apenas o intervalo de uma respirada da aluna para lhe dar alguma resposta. Não conseguiu formular nada. Ela, então, continou falando.

- E, depois, fico pensando em qual a importância do fato de um evento ter quase nenhuma chance de acontecer, quando ele acontece. O que quero dizer é que não adianta dizermos para alguém que a chance de encontrar o amor de sua vida no metrô ou de seu para-quedas não abrir é de zero vírgula um monte de outros zeros se isso acontece. Porque para o rapaz que conheceu a sua amada esposa no metrô ela é cem por centro para ele e para família do azarado que morreu no para-quedas a ausência dele vai ser pra sempre um conjunto vazio, sem vírgula nem nada.

Por acaso, o sinal tocou naquela hora. A aula terminou e as perguntas ficaram sem respostas. Naquele dia, na volta para casa dentro do metrô, uma desconhecida sentou-se ao lado do professor. Ele puxou papo ao ver que liam o mesmo livro. No ano seguinte, eles se casaram.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Asas

Todos os dias antes de sair para o trabalho, deixava uns restinhos de pão no parapeito. Quando voltava, eles não estavam mais lá. Durante os finais de semana, tinha a oportunidade de encontrar os passarinhos que eram seus prováveis visitantes diários. Normalmente, chegavam perto do meio dia. Cantavam alguma coisa entre uma bicada nos farelos e outra. Eram três. Ficava se perguntando se eram os mesmos sempre.

Começou a se apegar a eles. Comprou um bebedouro e instalou em cima da janela. Sentava no sofá, estendia o pé em uma mesa de apoio e ficava observando os três. Eram  pequenos e verdes com alguns detalhes em azul. Não saberia diferenciá-los entre si.. Ficava se perguntando qual era a relação que teciam entre si. Seria aquela uma família de pássaros com pai, mãe e filho? Ou, então, seriam três amigos? 

Montava histórias na sua cabeça de como era o restante das horas de suas vidas. Imaginava os três em um ninho, de noite, dormindo. Quando o sol nascia, voavam juntos emprestando um pouquinho de seu colorido ao cinza de São Paulo. Em determinado ponto do dia, se separavam. Cada um rumava para um canto. Mas, sempre terminavam juntos no ninho.

Às vezes, sentia uma pontinha de medo de que não aparecessem. Quando chegava do trabalho, a primeira coisa que fazia era checar se os farelos haviam desaparecido. Sentia um alívio esquisito quando constatava que os pássaros haviam passado por ali. Mas, afinal, por que voltavam? No fim do dia, de pé dentro do ônibus, voltava para casa pensando nisso. Imaginava que se tivesse asas, não passaria sempre pelos mesmos lugares. Voaria todos os dias sem destino certo, concluía ao caminhar do ponto para sua casa. Quando estivesse enjoada de alguma coisa, abriria suas asas para qualquer outro lugar. Nada de rotina. Era uma pena mesmo ter pernas e não asas. 

Chegou em casa naquela noite e os farelos estavam lá. Eles não tinham vindo. Deviam ter voado para qualquer outro lugar. Sentiu um vazio ao levar a outra metade do pão que havia deixado no café da manhã à boca. Já estava duro. Cantando algum samba qualquer entre uma mordida e outra, aninhou-se em seu sofá e estendeu o pé na mesa de apoio. E foi assim sempre. Eles foram e ela ficou. É uma pena que não tenha percebido que não é preciso ter asas para voar.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Definição

A sua arte é definitiva. Ele trabalha em um estúdio de tatuagem que fica dentro da galeria Ouro Fino, ali na Augusta. O que mais gosta de seu trabalho é ouvir dos seus clientes, entre uma reclamação da dor de tatuar a pele e outra, as motivações que os levaram a escolher aquela imagem. 

Tem gente homenageando a mãe e o time de futebol todos os dias. Depois que o Corinthians ganhou o mundial de clubes, nem se fala. Os pais também tatuam algo para os filhos com alguma frequência. Tem os que querem eternizar alguma data importante e os que não têm muitas razões para escolher aquela figura.

- Por que a borboleta? Ah, acho que fica delicada.

Algumas vezes, vem gente querendo tatuar a imagem de algum santo. Não é incomum ouvir histórias de milagres e de fé que motivaram o desenho da tatuagem. Tem o grupo que opta por tatuagens relacionadas a música. Esses vão da menina que marcou a clave de sol atrás da orelha ao senhor que reproduziu uma frase da música do Nirvana nas costas. Muitos clientes escolhem animais. Uns, optam por grandes dragões e leopardos. Outros preferem a silhueta de um gato bem pequeninha no pulso. As histórias são as mais diversas.

Sentado numa mesa de bar com alguns amigos ali na Augusta, ele costuma contar vários destes episódios. Hoje, entre um gole e outro, se pegou falando de como algumas pessoas voltam para tatuar algo novo porque a imagem anterior perdeu um pouco do sentido ou da importância. Em geral, não é arrependimento, é só uma sensação de que há algo maior a ser marcado naquele momento. E depois de um tempo, mais outra. A mesma pessoa volta com uma história nova. É como se ele estivesse conhecendo alguém novo. Às vezes, tem a sensação de que é como se a própria pessoa estivesse entrando em contato com uma nova versão dela mesma. Sabe aquele emprego que era a vida da pessoa? Ela largou. Ou mudou da cidade e até mesmo do país em que viveu a vida toda. Começou uma faculdade nova, casou com outra pessoa, simplesmente casou, deixou de gostar daquela música, começou a fazer análise, se recuperou de uma doença. Para cada um é alguma coisa. Mas, o fato é que é divertido ver esse encontros da pessoa que fez a primeira tatuagem com a que está buscando a segunda e perceber que, ao longo dos anos, a coisa mais importante da nossa vida muda.

A sua arte é definitiva. E essa é a graça, para ele. Trabalhar com o que é para sempre é ter contato diariamente com o que é passageiro e efêmero. Acontece daquela marca deixar de fazer sentido, mas é impossível ela deixar de fazer parte do que o tatuado é. Para aquela pessoa, será um lembrete eterno de alguma coisa mais importante de sua vida que a levou à atual coisa mais importante de sua vida e assim por diante.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Pijama de flanelas

"Eu odeio flanelas, sabe? Estou falando tipo destes pijamas flanelados. No dia em que você me contou que a minha mãe havia abandonado a gente, você estava usando um pijama assim. Ele era azul marinho. Pensando melhor, acho que ele era cinza. Agora não me lembro exatamente. Faz tanto tempo. Eu não devia ter nem 10 anos naquela época. O tempo voa mesmo, está completando 20 anos já. 


Naquele dia, você entrou no meu quarto e apertou a minha cabeça contra o seu peito. Lembro como se fosse hoje da sensação gostosa da flanela tocando o meu rosto. Era tipo aquilo que a gente sente quando está quase dormindo, sabe? Estava imerso naquela sensação quando você disse, com a voz seca e os olhos úmidos, que ela não ia voltar. Então, me apertou mais forte ainda contra si, como se a flanela pudesse amaciar a minha dor. Confesso que não entendi o real signifcado da notícia naquele momento. Os dias seguintes não me marcaram muito. Parecia que ela tinha ido viajar. Um dia saiu com suas malas de casa e no outro voltaria, como sempre fazia. De diferente tinha só o fato de que você passou a dormir comigo. Dizia que era por mim, mas acho que quem se sentia só durante a noite era você. 

Foi o tal pijama de flanela que fez a minha ficha cair. Comecei a sentir uma inexplicável irritação quando via você vestido com ele. Sentia receio de que você viesse me abraçar. Não pelo abraço, mas pela flanela. Quando ela tocava meu rosto, sentia um nó esquisito na garganta e não conseguia te falar isso. É claro que entendo, hoje, que não era o pijama que gerava aquele incômodo. Mesmo sabendo disso, não gosto dele. Devia ter te falado isso antes. Na verdade, acho que só me dei conta de tudo isso agora. Sei que você tem ele há anos e, hoje, passa grande parte do dia vestido com ele. Mas, você se importa se eu doar este pijama, pai?"

O pijama foi a forma que encontrou de ter uma conversa que raras vezes tiveram. Aquela foi uma das únicas vezes que falaram abertamente sobre a partida de sua mãe. Seja por isso ou pelo fato do pai ter doado o pijama, depois de lhe abraçar pela última vez vestindo a flanela, o nó de sua garganta, finalmente, se afrouxou.


segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Desbotado

Era uma história de um casal que havia se desencontrado há não sei quantos anos atrás. Agora, ele queria reencontrá-la. O apresentador fazia suspense dizendo que depois dos comerciais revelaria se a produção havia ou não encontrado ela. O rapaz roía as unhas.

Como que podia ela gostar tanto destes programas? Os dois olhos esverdeados vidrados na TV. Vestia uma blusa dele já bem desbotada. Antigamente, era uma das que ele mais gostava. Demorou para aceitar que estava descorada demais para sair com ela. Ainda bem que não havia dado a blusa. Agora, apesar de não poder usá-la, sentia uma coceirinha boa no nariz ao ver as duas - a blusa e ela - compondo uma coisa só.

Em uma mesinha em frente ao sofá, os 4 pés se emaranhavam . Ela atenta ao programa. Ele atento a ela. Pediria ela em casamento naquele momento, se tivesse um anel e dinheiro para alugar um apartamento pequeninho para os dois e para comprar o próprio anel. O apresentador chamou de novo os comerciais e nada de dizer se havia encontrado a tal da antiga paixão do rapaz. Não que essa história importasse alguma coisa. É só que ele ganhava mais um tempinho daquela expressão dela que já seria intrigantemente atraente por si só, mas somada a camiseta desbotada lhe dava vontade de casar.

Quando ela fez um carinho em seu pé, assustou-se. Por um segundo, ficou com medo que ela pudesse estar ouvindo seus pensamentos. Mas, e se tivesse? Qual o problema dela saber que ele casaria com ela, especialmente com aquela camiseta? Ah, vai ver que se assustaria. Fazia pouco mais de 6 meses que estavam juntos. Era pouco tempo para pensar em casar. Mas, quem mesmo inventou essa coisa de tempo? Se o rapaz que estava agoniado na espera da revelação do apresentador sobre o paradeiro da mulher que amava tivesse pedido ela em casamento em 6 meses, não estaria passando por isso.

Imaginou-se no lugar dele. Esperando para dizer para a mulher que amava algo que poderia ter ditor e não disse. Sendo torturado por um apresentador e uma platéia que aplaudia a toda hora que ele chamava os comerciais. Decidiu que esperaria os próximos comerciais e falaria. Falou que casaria com ela, em tom de brincadeira. Ela deu um beijo nele misturado a uma gargalhada e continuou a ver o programa acariciando o seu pé.

O rapaz da TV encontrou a antiga paixão já casada com outro. Ele também, alguns anos depois, acabou se casando com outra.

domingo, 6 de janeiro de 2013

O som do vento

O vento é a força do mar. Eles chegam a se confudir de modo que há quem pense que são uma coisa só. O mar empresta o seu verde ao vento. O vento empresta o seu som ao mar. Eles juntos conduzem a jangada de Lino. Às 3 da manhã, quando sai para pescar, não pode ver o verde do mar emprestado ao vento por conta da escuridão. É só quando o sol nasce que o verde do mar e de sua jangada, ainda que de tons diferentes, podem ser vistos. Nem às 3 da manhã e nem nenhuma outra hora do dia ele pode ouvir o soprar do vento. Lino é um pescador que não pode ouvir.

Desde sempre, Lino é pescador. Desde menino, Lino não pode escutar. Foi perdendo a audição aos poucos. Ainda criança, quando acompanhava o pai na jangada verde, começou a sentir o vento cada vez mais distante. Suas ondas de som pareciam cada vez mais baixas. Pensava que estavam ficando mais misturadas às ondas do mar e era isso. Só que não era isso. O que era mesmo era sua audição se perdendo.

Sentados no chão da jangada verde, Lino e o pai ficavam calados esperando os atuns ou os robalos ou os dourados cairem na rede. Vai ver que foi por isso que demorou tanto para o pai - e ele mesmo - perceberem que deixava de escutar. Suas conversas eram silenciosas. Vai ver que é por isso também que hoje, mesmo sem escutar nada, continua tendo profundas conversas com seu pai diante de algum nascer do sol em alto mar na jangada verde.

O silêncio não incomoda Lino. A companhia dos verdes dos olhos de seu pai, da jangada, do mar e do vento são suficientes. O que ele sente é estar esquecendo o som do vento, como alguém que perdeu algum parente e teme deixar de lembrar do seu rosto. Às vezes, fica observando atentamente seu pai contar alguma história que não pode ouvir. Parece até que está atento ao seu velho, mas na verdade está bem longe, imaginando o som do vento.

O vento é a força de Lino. Eles chegam a se confudir de modo que há quem pense que são uma coisa só. O vento empresta sua lembrança a Lino. Lino empresta sua imaginação ao vento.