quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Café

Um artista. Um conselheiro. Um caricaturista. Um inventor. Tudo isso junto, em uma pessoa só. Como se fosse um super-herói. No lugar de telas, muros ou papéis, ele faz sua arte em copos de café. 

Desde o ano passado, ele trabalha no Starbucks da Augusta. Ele prepara os cafés e os entrega aos clientes. Mas, não é só isso. Aliás, é muito mais do que isso. Enquanto prepara um frapuccino aqui, observa atentamente o próximo cliente da fila fazer o seu pedido no caixa ali. Esses instantes são sua inspiração. Desde o jeito como quem pede o café está vestido ou como seu cabelo está cortado, até a maneira como pega seu troco e encara o vendedor. 

Então, após preparar a bebida, ele pega sua caneta preta na mão para escrever o nome do cliente no copo. No Starbucks é assim, né? Seu café vem com seu nome. Parece que fica mais pessoal. Como se aquela bebida tivesse sido feita exclusivamente para você. Mas, para ele, a partir do momento em que o café de todo mundo vem com o seu respectivo nome, essa coisa de fazer você se sentir especial não funciona de forma tão única. Ele quer mudar isso. Afinal, é isso que ele faz: mocaccinos e as pessoas se sentirem especiais.

Além do nome, ele rapidamente faz alguma ilustração embaixo das letras. Às vezes, especialmente quando a casa está cheia e ele precisa ser ágil, faz um desenho pequenino. Um sol para o rapaz que chegou de óculos escuros, um ursinho para a garotinha de oito anos que está acompanhada da mãe - difícil dizer se é a filha ou a mãe que gostam mais do agrado. Já quando o movimento é menor, se dedica mais. Tem vezes que faz até uma caricatura do rosto da pessoa. Esses são os que fazem mais sucesso. Tem gente que volta e conta que guarda o desenho até hoje.

Outro dia, entrou uma mulher chorando. Pediu seu café chorando, foi pegar ele chorando. Quando foi recebê-lo, além de seu nome havia uma frase circulada por estrelas que dizia que tudo ia ficar bem. Pegou o café dando um sorriso salgado temperado pelas lágrimas.

Tem que ver a cara de alegria de quem recebe o copo. Várias vezes, perguntam quem fez o desenho para agradecer. Ele nunca se manifesta. Prefere assim. É a sua forma também de se sentir especial. Como um super-herói com identidade secreta que ronda os cafés na Augusta.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Gavetas e papéis

Como não havia suspeitado de nada? Estava ali, na cara dela o tempo todo. Só faltava pular e soltar gritinhos. Como não viu?

Os montinhos de papel dele pela casa e as gavetas repletas de documentos, fotos e contas sempre foram a regra. De repente, com a desculpa de que queria aproveitar o começo do ano para arrumar as coisas, passou a organizá-las. Os montinhos migraram para as lixeiras. As gavetas ficaram vagas. Decidia por se livrar da maioria das papeladas. Sempre havia deixado os papéis ali para caso precisasse saber onde procurar. Afinal o que tinha acontecido com o " caso precisasse"? Deve ter ido para algum daqueles sacos pretos junto com as contas e documentos velhos.

Nunca ia a médicos. Sabe como os homens são, não é mesmo? Mas, naquele mês decidiu visitar o oftamologista e o dentista. Dizia que precisava cuidar mais da saúde. Finalmente, havia percebido. Fazia anos que dizia isso para ele e ele nada de agendar as consultas. Quanta ingenuidade, ela havia acreditado que ele estava, de fato, querendo atualizar os graus dos óculos.

No dia em que ele foi embora, a surpresa dela durou apenas alguns instantes. Deveria ter agendado uma ida ao oculista para ela também. Quem sabe assim teria visto aquilo que passava diante dos seus olhos. Foi juntando as peças, as fichas foram caindo e ela reparou que a partida foi premeditada. Não aceitou. Ficou com raiva. Chorou. Hoje, ela só queria voltar para aqueles instantes de surpresa.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Linha verde

Estação Sumaré
Ela: Acho que devo estar lá em 20 minutos. Agora, é torcer para que o trem não fique parado em nenhuma estação. Depois, ainda dá tempo de comprar água no mercado. Será que o cara não percebe que estou super carregada? Podia levantar e me dar o lugar. É, pelo jeito não vai tirar a cara deste livro aí. E eu aqui, de salto alto, me equilibrando com essas sacolas. É muita má educação para um sujeito só.

Ele: Faltam 3 páginas para terminar o capítulo. Deve dar tempo de acabar antes de chegar. Qualquer coisa, sento ali na estação e termino para não deixar o capítulo na metade. Se pelo menos essa mulher parasse de esbarrar essas sacolas em mim, eu conseguiria ler em paz.

Estação Clínicas
Ela:  Quantos anos esse cara tem? Será que ele não levanta por achar que eu sou mais nova do que ele? Ele não deve ter muitos anos mais do que eu. Podia pelo menos se oferecer para segurar minhas sacolas.

Ele: Vou olhar feio! Se essa moça não parar de me apertar com esse monte de sacola não vou conseguir terminar o capítulo. As pessoas não pensam mais no outro. Vou sorrir para ela ficar constrangida. Só porque é bonita acha que pode ser espaçosa?

Estação Consolação
Ela: Cara de pau, está me vendo e ainda assim não levanta. Olhou no olho, não tem como fingir que não viu. E aí, amigão, não vai levantar não? Vai ficar sorrindo para mim? Não te conheço. Não vou sorrir de volta. Só porque tem este sorrisão lindo acha que eu vou cair nessa? Deve ser do tipo garanhão que acha que ganha qualquer uma com uma risadinha.

Ele: Não consigo me concentrar. Vou guardar esse livro e deixar para ler depois. Será que a moça quer sentar? Assim, pelo menos ela para de me esbarrar. 

Estação Trianon Masp
Ela: Vou agradecer e dizer que desço na próxima. Alguma hora ele se tocou pelo menos! Vai ver que eu que estava implicante. O cara devia estar concentrado no livro. Coitado, não deve ser essa pessoa sem educação que eu estava pensando.

Ele: Nossa, quanta sacola. Agora que eu vi como a moça estava carregada. Devia ter levantado antes. Deve estar achando que eu não sou atencioso.

Estação Brigadeiro
- Oi? Me desculpe por não ter te me levantado para você se sentar. Não vi como estava carregada.

- Sem problema nenhum, estava super bem de pé!

- Quer tomar um café?

Naquela tarde, ele não terminou o capítulo e nem ela foi no mercado.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Vestido de Noiva

Com um saco preto de lixo apoiado no ombro, ele vinha caminhando pela avenida Rebouças. O pesar dos seus passos fazia parecer que carregava o mundo nas costas. E, de fato, o fazia. Tudo que tinha estava ali dentro. Vestia roupas mais quentes do que aquelas que o clima do dia sugeria. Calças pretas bem surradas, uma blusa de mangas longas manchada e chinelos. A barba era longa e cinza. Na cabeça, um boné que parecia ter sido material de campanha de algum candidato a vereador algumas eleições atrás. Era impossível dizer a sua idade.

Ele era morador de rua. Suas passadas davam a impressão de estar alheio a tudo que passava a seu redor. Nem o trânsito caótico, nem os pedestres apressados com seus guarda-chuvas, muito menos as sirenes pareciam existir para ele. Poderia muito bem estar caminhando em um deserto. 

Foi, então, que algo interrompeu sua aparente apatia. Passava diante de uma loja de roupas black tie, quando parou e descansou a sua sacola na calçada. O último casal de clientes daquele dia deixava a loja que tinha a vitrine dividida em duas partes. No lado esquerdo, estavam smokings e fraques. Na direita, eram expostos vestidos de noiva. Ele parou diante da segunda e ficou encarando o vidro respingado da chuva que caía.

Ele não tinha uma noiva. A verdade é que, recentemente, não tinha sequer muitos planos que ultrapassassem os dias seguintes. Aqueles vestidos eram para quem tinha noiva e planos, pensava consigo mesmo. Para quem tivesse razões para brindar. Para quem tivesse construindo um apartamento e um futuro. Ele só tinha sua sacola. Se nem o vestido caberia lá dentro junto com seus cacarecos, imagine onde guardaria as razões para brindar e os planos para o futuro, resmugava para si mesmo.

Foi-se embora sem rumo certo. Parecia seguir como tinha chegado. Mas, não. Deixou a vitrine abrindo o saco a sua frente e começando a se livrar de alguns elementos que estavam lá dentro. Era hora de liberar espaço para novos planos.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Longeapertar

Longeapertar. É o sentimento de quem está longe fisicamente de alguém que ama, mas sente-se estranhamente próximo. Por alguns instantes, pode até ter a sensação de estar ainda mais perto do que quando estava divindo a mesma casa, cidade ou país de quem partiu. Este é um sentimento antigo que já era experimentado por muitos dos nossos antepassados. Ele não está relacionado com os dispositvos tecnológicos que parecem encurtar as distâncias hoje em dia. Desde o mais moderno aplicativo até a mais rudimentar forma de se comunicar têm o poder do longeaperto. Seja por meio de uma ligação de Skype ou por meio de um cartão postal que chega pelo correio a sensação de proximidade é despertada.

No entanto, não se trata de uma proximidade próxima. É uma proximidade de braços curtos demais para tocar ou abraçar a pessoa distante. E daí que vem a parte do aperto do longeaperto. Se a é prefixo de negação, então a-perto nada mais é do que o não-perto. Este é o paradoxo do longeapertar. É a sensação de estar perto de quem está longe sem poder apertar, tocar. É aquela vontade que temos de fazer um cafuné, deitar no colo ou simplesmente dividir uma cerveja com quem podemos ver apenas por uma foto.

Quem sabe isso muda. Quem sabe alguém inventa o teletransporte. Um botão que ao ser pressionado nos leve para um mesmo espaço onde o outro está. Nem que seja só por um almoço ou pelo tempo de uma madrugada. Como num passe de mágica. E então, o apertar vai deixar de ser sobre o não-perto e passar a ser sobre o apertar de um botão que instataneamente nos leva para o sim-do-lado.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Reto toda a vida

- Oi? Boa tarde! O senhor sabe como faço para chegar nesta rua aqui? - abriu o mapa que levava na mão e apontou o destino que buscava.

- É bem pertinho daqui. Faz assim, vira na segunda à direita, pega a primeira à esquerda e depois vai reto toda a vida. Não tem erro.

Agradeceu e continou a caminhada. Contou a primeira à direita, encontrou a segunda e virou. Logo viu uma rua à esquerda e entrou nela. Pronto, agora era só seguir reto toda a vida. Relaxou e foi caminhando nada  preocupado em encontrar outras saídas. O próprio velhinho que tinha orientado o caminho havia dito que não tinha erro.

Riu consigo mesmo ao imaginar como seria sua existência se pudesse andar reto toda a vida. Enquanto caminhava, ia pensando sobre como seria sua vida toda passando naquela reta. Alguns passos a frente, pegaria o seu diploma. Depois de novas duas quadras, seria promovido. Começaria a namorar uma garota que conheceria naquela reta e levaria ela para jantar em um restaurante que ficava na esquina seguinte. Cinco quadras depois se casariam e ali mesmo comprariam sua casa. Seus dois filhos, que nasceriam em um hospital localizado no mesmo quarteirão, cresceriam brincando com os vizinhos no parquinho de sua rua. Depois de suas formaturas, também se casariam na mesma igreja em que ele o havia feito, afinal era única localizada na sua reta. Quando aposentado, encontraria alguns outros senhores da rua para jogar gamão em uma mesinha que sua esposa colocaria na calçada. Morreria e seria enterrado no cemitério do fim da rua.

Decidiu parar e sentou na calçada da tal reta. Abriu o mapa e ficou encarando ele. Desenhou uma rota alternativa em sua cabeça. O destino era o mesmo, o caminho era outro. Virou na primeira esquerda. Podia ser que desse errado. Podia ser que estivesse escolhendo o caminho mais longo e que se perdesse. Mas, assumiu o risco. Só assim poderia encontrar um atalho ou, pelo menos, um horizonte diferente.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Mapas

O despertador não tocou. A água do banho não esquentou. A chave do carro desapareceu. Encontrou a chave. Quando chegou, a reunião já tinha começado. Olhar de reprovação do chefe. O café estava frio. Não salvou o documento no qual estava trabalhando. Ficou trabalhando na hora do almoço. Sua mãe ligou para reclamar de seu pai. Não conseguia terminar o papo. A bateria do celular acabou. Voltou a digitar o documento. No caminho para casa, lembrou que era o seu rodízio. Viu algo que parecia um guarda de trânsito. Não tinha certeza, pois tinha esquecido os óculos no escritório. Aquele farol nunca abria. Bem quando ia passar, ficou vermelho de novo. Só podia ser brincadeira. Ninguém nessa cidade sincroniza os faróis?  Deus do céu, por que justo com ele? Prometeu que ia se mudar de São Paulo, comprar um despertador novo e que ia operar os poucos graus que tinha de míopia.

Um vendedor de mapas se aproximou do seu carro. Ele poderia ter balançado a cabeça negativamente e ter seguido seu caminho. Mas, não foi isso que fez.

- Por que o senhor está fazendo isso? Você realmente acredita que alguém possa comprar um mapa mundí no farol? É isso mesmo? Imagina só, o indivíduo voltando para casa e pensando que precisa parar para comprar lâmina de barbear, leite e um mapa! Vai procurar umas balas ou carregadores para vender, meu chapa!

O vendedor parado, com os 5 continentes abertos na sua frente em silêncio. Ele só ouvia a sua própria voz. É estranho ouvir a sua própria voz. Se deu conta da situação rídicula que protagonizava e ficou com vergonha. A vergonha era menor do que a raiva acumulada no dia. Continuou. Falava tão alto que ficou com a sensação de que poderia ser ouvido nos quatro cantos daquele mundão estampado no mapa. Se imaginou ali, no cantinho da América do Sul. Um pontinho enfurecido. Um pontinho no rodízio, sem celular e sem óculos. Parou de gritar, abriu a carteira e comprou o mapa.

Chegou em casa, pregou ele na parede em cima da sua cama e foi dormir. Deitou-se de certa forma aliviado lembrando de que o mundo estampado em sua cabeceira não acabaria por conta de dias ruins cheios de problemas-pontinhos.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Amor de carnaval

Foi um amor de carnaval. No meio daquele bloquinho de cores e amores, eles se cruzaram. Foi um desses encontros que jamais teria acontecido se ele não tivesse parado para comprar uma cerveja ou ela para tirar uma foto com as amigas. O timing foi perfeito. Acabaram lado a lado, cantando a mesma marchinha. 

Se não fosse o fato de as outras milhares de pessoas estarem também cantando a tal da marchinha, teria sido uma dessas coicidências que marcam o começo de uma história de amor. Provavelmente, teriam tido um segundo encontro em algum bar na Vila Madalena onde, entre uma risada e outra, descobririam ter um amigo em comum. Teriam se encontrado outras vezes nos finais de semana, até passarem a se ver também durante a semana. Descobririam que não tinham o mesmo gosto para cinema, mas que compartilhavam o desejo de fazer uma viagem pela América do Sul. Viajariam para uma praia perto de São Paulo. Apresentariam o outro para os amigos e sairiam com certa frequência com casais formados por alguns deles. Passariam a ficar confortáveis com o silêncio do outro. Cozinhariam juntos, enquanto ela comentaria sobre o novo paquera de uma amiga ou ele falaria sobre o que aconteceu no seu dia. Passariam a se ligar para dar boa noite e para acordar o outro na manhã seguinte. Ela daria presentes para mãe dele no Natal e ele assistiria ao futebol de domingo com o pai dela.

Mas, nada disso foi. Trocaram apenas alguns beijos. Nada de telefones, encontros na Vila Madalena, futebol com o pai dela ou ida a América do Sul. Apenas, aquele momento. O timing foi perfeito. A marchinha não marcou o começo de uma história de amor. Na verdade, embalou toda ela. Aquele amor de carnaval, que durou o tempo do desenrolar de uma serpentina.