segunda-feira, 25 de março de 2013

Casa de repouso

Todos os dias, conversas muito bem temperadas com uma pitada de nostalgia animavam a tal casa de repouso. Foi em um desses papos que faziam parecer que o tempo havia voado que eles se conheceram. Ela, viúva, três filhos e 81 anos. Ele, divorciado, nenhum filho e 79 anos. Um dia descobriram que tinham um conhecido em comum lá de Minas Gerais e pronto. O papo aconteceu e as afinidades ficaram claras.

Trocavam bilhetes apaixonados que eram entregues por outros senhorzinhos. Ele escrevia que não sabia como tinha vivido até ali sem conhecê-la. Ela respondia que nunca havia se sentido assim na vida. A timidez impedia que conversassem sem ser por suas cartinhas. 

Estavam todos jantando canja certa noite quando, como de costume, ela recebeu um bilhetinho dele que sentava do outro lado do refeitório. Nem reparou que o ambiente ficou em silêncio quando começou a desdobrar o papel. Por trás das dezenas de pares óculos que  recheavam o salão, olhos atentos a ela. Abriu o papel e encontrou a seguinte mensagem escrita com uma caligrafia tremida:

Quer casar comigo?

Por conta do nervosismo, encarava o frango desfiado que boiava em sua tigela com tal proximidade que quando recebeu o pedaço de guardanapo enviado por ela demorou a conseguir lê-lo. O calor da sopa havia embassado seus óculos, mas sem impedí-lo de ler a resposta igualmente tremida:

Sim.

E no lugar de viver o fim da vida decidiram viver o amor da vida.

sexta-feira, 22 de março de 2013

Na plataforma

Estação Consolação em pleno horário de almoço de uma terça-feira. As mulheres que circulam por ali andam em duplas ou em pequenos grupos. Uma ou outra aperta o passo em uma caminhada solitária. Algumas, aproveitam o intervalo no escritório para resolver alguma pendência. Vão comprar um presente para o amiguinho do filho que faz aniversário, fazer as unhas ou pagar alguma conta. Outras, vestidas em seus vestidinhos ou uniformes, voltam para a casa com a mochila nas costas para comer por lá depois das aulas da manhã. Tem também senhorinhas usando conjuntinhos de cores pastel ou alguma peça com estampa florida. 

Em comum, têm pouca coisa. Inclusive, parecem completamente diferentes. Cada uma transbordando um pouco do que é, sente e acredita por meio da forma de caminhar, falar e se vestir. Até que, de um instante para outro, se tornam profundamente parecidas. Isto acontece no momento em que o degrau da escada rolante em que ela estava toca o nível da estação onde se embarca nos trens. 

Ela caminha calma. Quer dizer, apenas se pode concluir isso pela velocidade de seu caminhar, afinal é impossível ver a sua expressão. Pode não ser calma, pode ser medo. Quem sabe ela esteja perdida. Não há como saber. O que parece é que vem de um mundo que não é o mundão de São Paulo. A única dica que se tem sobre ela é que seus olhos castanhos estão usando maquiagem. Além disso, não se pode perceber nada, nem se é jovem ou mais velha, se é loira ou morena, se está carregando um sorriso ou uma expressão mais séria.

Ela veste uma burca preta. Chama atenção dentre as demais mulheres que caminham por ali. De repente, faz parecer que todas aquelas mulheres tão diferentes entre si são iguais. Como se houvesse dois grupos, o dela e o das outras. Apenas como se houvesse, porque não há. No fim das contas são, naquele momento, uma única multidão, formada por mulheres esperando o trem para seguir na mesma direção. 

quarta-feira, 20 de março de 2013

Partida

Um enterro em um dia ensolarado. Como ela gostaria que fosse, diziam os amigos que não acreditavam que ela havia partido. É bem verdade que já tinha idade avançada, mas não precisava ter ido. Há quem vivesse mais. Recentemente, havia dado sinais de que o fim estava próximo. Ainda assim, resistia. A verdade é que os amigos imaginavam que este seria apenas mais um desses sustos que costumava dar. Mas, que ao final, sobreviveria. Infelizmente, dessa vez foi mesmo o final.

Fotógrafos estavam por todos os lados. Se não fosse o seu enterro, as pessoas poderiam encarar as suas presenças com as câmeras penduradas no pescoço como falta de respeito. Lugar de fotógrafo é em casamento e em festa de aniversário, poderiam esbravejar. Neste caso, fazia todo o sentido, mesmo que ela não fosse nenhuma celebridade. 

No lugar de flores, seu caixão foi coberto por caixinhas dos antigos filmes Kodak. Era impossível olhar para eles sem lembrar de seus tempos de maior vigor. Como ela parecia imortal naquela época. Ninguém imaginaria que aquele dia chegaria. Mas, acho que ninguém gosta mesmo de pensar neste tipo de momento, não é mesmo?

Com ela, estava indo embora a sua característica habilidade de capturar momentos únicos. Partia também a forma surpreendente como revelava às pessoas emoções vividas e o charme que trazia em sua nostalgia. Era o fim da leveza com que recheava os ambientes em que estava de lembranças queridas e a maneira como conseguia materializar recordações. Talvez ninguém mais consiga fazer isso tão bem como ela fez. 

Foi assim o dia em que morreu a foto revelada.

segunda-feira, 18 de março de 2013

Uma porta verde

Uma porta verde e pequenina instalada em uma calçada do centro de São Paulo. Não dizia nada para quem não pudesse ver através dela. Dizia muito para quem tivesse coragem de bater e descobrir o que ela guardava.

Toda manhã, um senhorzinho de boina destrancava ela e entrava. Então, ele só era visto novamente quando a noite começasse a cair. Por volta deste horário, o mesmo homem usando a mesma boina trancava a porta verde e ia embora. Durante o dia, algumas pessoas paravam diante da portinha, batiam nela e entravam. Dificilmente, ficavam mais do que uma hora por lá. Dentre os frequentadores do espaço guardado pela porta havia gente de todo tipo e idade, de jovens casais apaixonados até mães com seus filhos pequenos.

Desde o mês passado, o senhor de boina não apareceu. Algumas pessoas passaram por lá, bateram na porta e não foram atendidas. Os vizinhos, que nunca haviam percebido a existência da porta verde, começaram a notar o movimento. Foi ai que ficaram sabendo que ele havia morrido e se deram conta de que ninguém mais tinha a chave da portinha verde.

Daquele dia em diante, os vizinhos repararam na porta e passaram a criar as mais diversas teorias sobre o que havia ali atrás. Tinha quem falasse que era uma loja de coisas antigas, quem dissesse que era um centro espírita e aqueles que tinham certeza que o senhorzinho praticava alguma atividade criminosa por ali. A curiosidade era tanta que quem sempre esteve lado a lado e nunca se falou passou a agendar cafés ou se encontrar na calçada para compartilhar as suas hipóteses.

Aos poucos, o assunto se esgotou. Os papos sobre o que existiria por trás da porta foram diminuindo até deixarem de acontecer. Foram sendo substituídos por outros. Pouco a pouco, cada morador foi revelando para seus vizinhos o que existia por trás da sua porta. Afinal, não iriam esperar outros desaparecerem sem saber o que guardavam. Nunca descobriram o que o senhorzinho de boina havia deixado por ali em sua rua. Alias, isso nem importa mais. Afinal, seja lá o que houvesse atrás dela, a porta verde aproximou a vizinhança toda que estava logo à sua frente.

quarta-feira, 13 de março de 2013

Classificados

Vendo Mustang 97 em ótimas condições, segundo o dono - eu mesmo. Banco de couro onde uma noiva a caminho da Igreja já se sentou, minha filha. É possível encontrar esparramada um pouco da emoção vivida no dia por lá ainda. Talvez, mais transbordada por mim, pai da noiva, do que pela própria. Ar-condicionado. Quatro portas. Trava nas traseiras para evitar acidentes com crianças, como quase aconteceu no dia em que meu neto abriu ela em pleno movimento. Futuro comprador, recomendo usar, pois tomamos um baita susto naquela tarde. Se por acaso estiver se perguntando, a travessura lhe rendeu apenas uma dúzia de assinaturas dos coleguinhas no gesso que teve que usar no braço durante alguns dias, não me lembro quantos exatamente. Manutenção e revisões em dia. Terço pendurado no retrovisor, herança de meu avô português que o colocou ali com as próprias mãos dias antes de morrer. Diferentemente do que você, potencial comprador, deve estar imaginando, ele não era um homem religioso. Curioso ele ter pendurado aquela proteção. Parece que sabia que ia morrer. Como eu sou um homem supersticioso, preferi não tirar e, se me permite uma sugestão, eu o manteria ali. Farol traseiro direito levemente rachado - quase imperceptível - por conta de uma desatenção de meu filho. Aconteceu em uma daquelas ladeiras que ficam em Perdizes quando o sinal ficou verde. Talvez não tenha sido desatenção. Possivelmente, tenha mais a ver com a sua pouca prática. Era a segunda ou terceira vez que saía de carro depois de tirar a habilitação. Depois disso, perdi o medo de emprestar meu carro para ele. Se quer mais um conselho, entregue ele na mão de seus filhos também. Sente-se no banco de passageiro e relaxe mexendo no rádio. Estabilidade na estrada comprovada nas minhas incontáveis idas e vindas a Bauru, cidade onde minha mãe vive. Com o tanque cheio, um bom CD e uma parada para um café os quase 400 km eram percorridos com tranquilidade.

Valor a negociar. Aceito propostas. Tenho tido dificuldade para mensurar quanto esses deliciosos 16 anos da minha vida valem.

segunda-feira, 11 de março de 2013

Sapatos


Sapatos sociais, tênis de corrida, saltos altos, chinelos se cruzavam misturando a calma e a pressa que podem mover um paulistano em uma manhã de segunda-feira. A avenida era barulhenta o suficiente para ser impossível ouvir o som dos incontáveis passos que a cobriam. Bem ali, no meio daquele emaranhado de pernas, havia um rapaz deitado, dormindo na calçada.

Tão claramente visível e tão evidentemente ignorado ao mesmo tempo. Os pés, que pareciam fazer uma dança ensaiada, desviavam para não pisar nele, como o fariam se houvesse um buraco ou qualquer outro obstáculo em seu caminho. Alguns abaixavam os olhos e observavam de relance o homem adormecido. Outros, decerto já bem experientes na vida de cidade grande, desenvolveram uma habilidade que lhes permitia desviar sem nem ter que encará-lo diretamente.

O rapaz, que usava o braço como travesseiro, parecia mais uma extensão da calçada. Algo que sempre esteve ali, como um prédio ou telefone público. Imaginar sua história, da onde veio, o que fazia ali, os motivos pelos quais havia escolhido aquele canto para se deitar seria desagradável demais. E de desconfortável, já eram suficientes os saltos altos e binos ficos dos sapatos.

No final da manhã, o rapaz acordou, levantou-se e saiu andando. Passou a fazer parte da dança de pés que acontecia na avenida. Era o único que estava descalço, sentindo o calor absorvido pelo asfalto nas solas dos seus pés. Poderia ser um detalhe sem importância. Mas, não era. Afinal, desde quando os donos dos pés calçados perderam a capacidade de ver quem anda descalço?

sexta-feira, 8 de março de 2013

Balanço

É um balanço único, característico só delas, das mulheres. Com as suas singularidades, carregam essa habilidade consigo. A habilidade de balançar.

Balançam os cabelos. Longos ou curtos. Castanhos, loiros ou grisalhos. Cobertos por véus, presos em rabos de cavalo, sob bonés.

Balançam corações e têm os seus balançados também. Tem vezes que se fecham para balanço.

Balançam igual a um pêndulo que parece oscilar o tempo todo, de um extremo ao outro, sem cansar. Amam e odeiam o chefe. Vestem e desvestem a mesma roupa. Deixam o cabelo crescer para cortar e, então, cuidam para ele crescer. Juram de pés juntos que não vão segurar a mão da amiga quando aquele idiota com quem ela insiste em sair não ligar. E quando ele não liga, diz que avisou, mas lá está com o colo e todos os cuidados do mundo a postos. 

Balançam a caminho do mar, do trabalho ou da pista de dança.

Balançam paradigmas. Talvez isso seja o mais importante. Viraram eles de cabeça para baixo, do avesso. Não tem mais coisa de menina e coisa de menino. Conquistaram direitos e, com eles, criam coisas incríveis. São pintoras, mães, advogadas, presidentas, dona de casa. Elas que escolhem. E querem conquistar mais, porque nem tudo foi balançado ainda. E nem todas as coisas incríveis foram criadas ainda.

A habilidade de balançar é assim. E passa de mãe para a filha. E da filha para a neta. E de todas elas para o mundo, que pega embalo e balança também.

quarta-feira, 6 de março de 2013

Reencontro

Era um encontro. Ou melhor, um reencontro.

Alguns encontros fazem com que a gente se sinta como se houvesse borboletas em nosso estômago. Elas ficam lá voando sobre nossa expectativa em relação ao que vamos encontrar e o que a outra parte espera também daquele momento. Os reencontros, por sua vez - especialmente aqueles que acontecem depois de anos de distância -,   têm o poder de fazer essas borboletas se multiplicarem. Neste caso, elas sobrevoam o nosso receio de desconhecer o que já conhecíamos.

Especificamente neste reecontro, ele tinha medo de não reconhecê-la. Devia muito do que era a ela. Ela foi uma das suas principais referências. E se essas referências não fizessem mais sentido?  Juntos, tinham muita história. E se não houvesse mais aquela sorveteria, aquela sala de cinema que oferecia desconto de quarta, as flores nas janelas ou a feira de domingo? Por outro lado, sabia que não era o mesmo também. Tinha mudado, o que  significava que olharia para ela a partir de uma nova perspectiva. Ela também receberia alguém diferente daquele que havia partido anos atrás.

Enquanto esperava as malas diante da esteira, se deu conta do quanto havia levado dela. Desde o jeito de falar até as suas comidas preferidas. Será que ele ainda encontraria aquelas deliciosas panquecas? Ficou se esforçando para lembrar porque mesmo a havia abandonado. Quem sabe aquela visita passageira não se revertesse em algo definitivo. Quem sabe ela não o convenceria a ficar.

Respirou fundo, espantou as borboletas do seu estômago e tomou coragem para descobrir as respostas de suas dúvidas. Abriu a porta do aeroporto e reencontrou ela de braços abertos para recebê-lo, a cidade onde havia nascido.

segunda-feira, 4 de março de 2013

Previsões

Foi tão inesperado quanto o instante que separa a não-chuva da chuva. Foi mais  de repente do que o apertar dos olhos quando entram em um espaço ensolarado. Sem mais nem menos, passou a ser impossível prever o tempo. Em programas de TV, cientistas pediam paciência e meterologistas diziam que ainda não era possível explicar a causa do acontecimento, mas que em breve seria possível checar a variação climática diária novamente. 

O fato é que, sem saber se o dia seria quente ou frio, as pessoas passaram a sair de casa com todas os tipos de roupa dispostas em camadas. Assim, se o frio matinal persistisse durante a tarde, era só manter os casacos no corpo. Caso contrário, eles eram descartados e substituídos pelas roupas mais leves que antes estavam escondidas por de baixo deles. Nos dias quentes, logo cedo, era possível ver pessoas carregadas de casacos e cachecóis apertadas nos vagões do metrô.

Quem menos sofreu foram aqueles que trabalhavam de terno e gravata. Para esses, a previsão do tempo nunca fez diferença. Ainda que seguissem sentindo calor nos dias de altas temperaturas como antes, o simples fato de todos os demais humanos desconhecerem a forma como o clima se comportaria durante o dia conferiu um ar de vantagem a esta parcela de engravatados. Houve quem aderisse a esta vestimenta mesmo sem precisar.

Algumas pesquisas indicaram outras tendências surpreendentes. A falta de certeza de que choveria, aumentou a porcentagem de guarda-chuvas levados dentro da bolsa em relação aos dias em que havia sido possível prever que a chuva viria, por exemplo. Outro estudo apontou o aumento na procura por horóscopos. Já que a ciência não dava alguma pista do que aconteceria durante o dia, a astrologia passou a se mostrar como uma alternativa mesmo para os mais céticos.

Como a luz que volta depois de uma queda de energia, a previsão do tempo repentinamente passou a funcionar novamente. Tem quem descreva o ocorrido como um inusitado lembrete para nós, seres humanos, de que a capacidade de prever ou influenciar algum fenômeno externo não é sinônimo de controle, embora alguns tenham a impressão de que seja.  O que nos resta é torcer para que o ocorrido não se repita e por mais dias ensolarados.

sexta-feira, 1 de março de 2013

Busca

Enquanto caminhava para a sala dele, meio inclinada para o lado direito por conta da pesada sacola de livros que carregava neste ombro, imaginou o que encontraria. Móveis coloridos, souvenirs dos diversos países por onde passou e uma biblioteca particular. A porta se abriu. Foi surpreendida ao reparar que sua camisa azul turquesa era a única fonte de luz do ambiente monocromático.

Ele estava em uma poltrona cinza que parecia ter sido bege tempos atrás. Seu pés descansavam em um tapete encardido. Ele era seu escritor favorito. Já havia lido todos os seus livros, os quais carregava consigo para que fossem autografados um a um. Estava eufórica com a possibilidade de entrevistá-lo e esperando um papo super animado. Não foi nada disso. Suas respostas às perguntas dela sobre o que mais poderia querer atingir foram secas. Suas reações diante das declarações dela sobre o quanto admirava o seu trabalho foram tão apagadas quanto as cores da sua sala. Então, quando se fez um silêncio incômodo, ele decidiu inverter a lógica da conversa passando a fazer as perguntas:

- E você, o que quer atingir? - questionou sem mudar o tom de voz.

- Eu quero deixar um legado. Escrever algo tão importante que seja reconhecido com um daqueles ali - disse, apontando para um importante prêmio de literatura escondido atrás de uma pilha de papéis que conferia a sala um ar de cartório.

- Leva. É seu. Se é isso que é importante, fica com ele.

- Como? De forma alguma! Esse é o reconhecimento do seu trabalho! Jamais poderia tirá-lo daqui.

- Eu também já achei que realização era isso - disse ao se levantar sinalizando que a entrevista estava encerrada.

Tentou escrever a matéria sobre a conversa de todas as formas. Foi só quando notou que não era sobre literatura que haviam falado que encontrou o caminho para produzí-la. Naquela tarde, acabou escrevendo sobre felicidade.