sexta-feira, 28 de junho de 2013

Arroz

Como toda boa avó, ela fazia o melhor arroz do mundo. Era um arroz soltinho, branquinho e que deixava a casa toda com um cheiro delicioso. Tão saboroso que dava até dó do feijão. A vontade era mesmo de comer o arroz puro e deixar a mistura de lado. Difícil dizer se ela gostava mais de prepará-lo ou de ver os netos comendo com todo aquele gosto.

Com o tempo, o arroz da vovó foi ficando mais raro. Ela foi indo menos para a cozinha. Normalmente, a moça que trabalhava na casa dela preparava a refeição. Outras vezes, os filhos que se encarregavam de cozinhar.   Quando ela mesma fazia, era motivo de festa. Em geral, aliás, era em momentos de celebração. O tempo tinha feito a comida de todo dia virar prato de ocasião especial.

Nessa semana, ela veio almoçar em casa. Entre uma garfada e outra, comentamos que o arroz que a minha mãe tinha feito estava delicioso, mas que ainda não era como o arroz da vovó. Foi, então que ela disse:

- Nem lembro da última vez que fiz meu arroz. Qualquer dia desses, preciso ir para a cozinha preparar.

É engraçado isso que acontece conforme vamos ficando velhos. Percebi que ela havia esquecido em algum canto de seu caminho esse ritual de preparar o arroz. Mais ou menos da mesma forma que fazia, cada vez com mais frequência, com seus óculos. Vez ou outra, se via procurando por eles pela casa sem lembrar onde os tinha deixado. Mesmo os óculos tendo um papel muito importante na sua vida, não eram algo no que prestava atenção o tempo todo. E, então, num instante deixava eles por ai. Mas, justamente por precisar dos óculos, de repente lembrava e ia buscá-los. Tudo isso para, certamente, perdê-los novamente pela casa em breve.

No meio do trajeto da vida, vamos esquecendo coisas pequenas pelo caminho. E, então, de repente,  lembramos delas e decidimos buscar onde as deixamos, mesmo sabendo que vamos deixá-los novamente jájá. Acho que é ai que nos damos conta de como são grandes essas pequenas coisas da vida.

terça-feira, 25 de junho de 2013

Jazz

Naquela semana, todas as noites foram noites de jazz.

Por um lado, havia aquela base que dava suporte para todo o resto. Assim como o blues faz para o jazz, alguns manifestantes estiveram ali todos os dias para reivindicar a redução da tarifa do transporte público. Eram a base, as notas certeiras que ofereciam o ritmo para os demais sons que viriam se juntar a elas.

Por outro, havia quem viesse para improvisar. No lugar das clarinetas ou trompetes, os cartazes. E, a cada manifestação, uma surpresa sobre o som que fariam. Estava ali a criatividade de um músico de jazz. Nunca haviam ensaiado antes. Um, certamente, não poderia prever o que o outro ia reivindicar. Mas, criaram um lindo - ainda que não tão harmônico, - arranjo improvisado. Sem maestro nem nada. 

Exatamente como em consecutivos shows de jazz, nenhuma noite foi igual a outra. E nem precisava ser. Os sons eram diferentes, os focos dos músicos não eram os mesmos. Provavelmente, não teriam sido ouvidos tocando isoladamente. Mas, juntos não poderiam ser ignorados, mesmo com as notas meio embaralhadas.

A música faz isso com a gente. Faz a gente querer dançar. Não dá para explicar o que nos move. De repente, o corpo levanta da cadeira e quer sacudir. Às vezes, só sacudir os ossos, às vezes, sacudir todo um país.

sexta-feira, 14 de junho de 2013

Vínculo

Querido,

Você deve ter levado um susto quando viu meu nome na sua caixa de entrada. Imagino até a sua cara. Quer dizer, imagino a cara que faria quatro anos atrás. Já faz tanto tempo que vim para São Paulo que é difícil dizer se ainda levanta as sobrancelhas quando é surpreendido.

De lá para cá, nenhuma notícia sua. Confesso que não imaginei que o fim seria tão definitivo. Imaginei várias vezes você batendo na minha porta e dizendo que tinha se mudado para cá também. Hoje, anos depois, fico aliviada que não tenha feito isso.

A cidade não é fácil para quem acaba de chegar. Não tivemos um começo tranquilo e várias vezes pensei em voltar. Mas, assim como você o fez, ela foi me conquistando aos poucos. Foi igualzinho o seu jeito de me ganhar. Nunca perdi de vista os seus defeitos e o que me incomodava, mas as partes boas pareciam compensar. É bem verdade que a dinâmica é caótica por aqui, mas, de repente, até o cinza pareceu menos cruel aos meus olhos. E, assim, me rendi à vida pauslitana.

Passei por poucas e boas por aqui, mas ontem foi diferente. Você deve ter visto nos noticiários. A cidade ficou tensa. Tive medo e desejei estar com você. Um pouco egoísta até, eu sei, mas precisava te dizer. Junto com o medo, veio a raiva. Uma sensação de que a cidade fazia comigo o mesmo que você. Insistiu em me conquistar e quando criamos esse vínculo que temos hoje, colocou tudo em cheque. Quando percebi, me peguei justificando o que acontecia. Da mesma maneira que fazia com seus erros. 

Olha, não vou acabar esse e-mail dizendo que vou voltar. Não é sobre isso. O desfecho da minha história de amor com a cidade é diferente do que o da nossa. Alias, esse e-mail é sobre isso. Aprendi a ficar. Nessa cidade que parece querer que todo mundo vá, entendi a importância de ficar. Justo aqui, criei essa conexão. Desculpa se não tentei arrumar as coisas entre nós quando pude. Tenho vontade de fazer isso por aqui. Eu quero ver as coisas diferentes em São Paulo. 

Espero que quando vier me visitar, já tenha conseguido mudar algumas.

Se cuida.

Beijos,

Alice.

terça-feira, 4 de junho de 2013

Marionete

Seu palco era a calçada. Seu público os pedestres. O ingresso era de graça.

Ele não era muito velho, mas também não era do tipo que seria considerado jovem. Sua arte era milenar. Em um cenário que reproduzia a própria rua onde se apresentava, um boneco de marionete ganhava vida. 

Caminhava pela calçada, sentava no chão, caía na sarjeta. Cada dia era uma história, não necessariamente diferente. Alguns episódios se repetiam vez ou outra. Mas, na vida é assim também, não é mesmo? Tem coisa que acontece de vez em quando. Tem coisa que se repete sempre, como é o caso do próprio artista que todos os dias se apresenta na mesma calçada.

Essa não é a única coisa que eles, artista e marionete, têm em comum. Eles também vestem a mesma roupa. Sempre estão de suspensórios. Sempre caminhando pela mesma calçada - um da cidade, o outro da caixa. Costumam estar sérios. O boneco por ser de madeira, o artista por ser de verdade.

Por outro lado, tem a diferença que está nas cordinhas. Quem decide os passos da marionete é o artista. Aliás, ele que escolheu a cor de seus suspensórios idênticos, a rua onde se apresentariam a e caixa onde o colocaria.

As pessoas sempre param para ver as apresentações. Algumas deixam uma moeda. Essas recebem um agradecimento. Sempre, dos dois. Ambos se inclinam sobre os joelhos para falar obrigada. Difícil dizer para quem os pedestres estão entregando o dinheiro. Às vezes, vendo os dois vestindo a mesma roupa, até confude. Porque tem gente que se identifica mais com o artista e tem gente que, se pudesse, preferia levar a vida do boneco.