segunda-feira, 29 de abril de 2013

Sede

Acordou com sede. Tomou um copo de leite e outro de água em seguida. Saiu para o trabalho com uma garrafinha na mão. Encheu ela algumas vezes ao longo do dia. Quanto mais água tomava, mais sede sentia.

Acordou de madrugada, levantou e foi para cozinha. Até o sono estava atrapalhado. Isso não costumava acontecer. Dificilmente, despertava ao longo da noite. Era uma sede estranha. Dessas que a gente não sabe do que é. Daquelas que tentamos matar com água, com suco, com refrigerante e nada. 

Da onde vinha essa sensação? Não era ressaca e nem consequência de algo diferente que havia comido. Deitou na cama e não conseguiu voltar a dormir. Tentava pensar em outra coisa, mas parecia não conseguir esquecer a sede. Não tinha pensamento que fosse mais forte do que aquele desejo.

Virava para um lado, virava para o outro, virava um copo de água. Nada. Irritada, desistiu de dormir. Sentou na cama. A hora devia beirar às três da madrugada. Pegou seu caderninho e lápis. Mergulhou nos seus desenhos. Junto com a sede, parecia estar transbordando criatividade. Nem viu a hora passar. Acordou na manhã seguinte com o despertador tocando e o caderninho aberto no colo. Tinha pegado no sono.

Foi só quando já estava indo para o trabalho que se deu conta de que a sede tinha acalmado E não era por conta dos copos de água que tomou. O que resolveu foi a dose de inspiração que se transformou nos inúmeros desenhos que produziu na madrugada. Tem sede que não é de água. É uma ânsia diferente. É sede de criar, de fazer e de acontecer.

quarta-feira, 24 de abril de 2013

Palavras caladas


Naquele país, ninguém falava. Ali, a voz não era necessária para se fazer entender. E a comunicação funcionava muito bem.

Todos os habitantes do país tinham sempre um caderninho e uma caneta à mão. Ao passar em frente a um restaurante, por exemplo, era possível ver as mesas cobertas de folhas e anotações. Um contava para o outro do seu dia, dos seus sentimentos e as novidades por meio da escrita. Vai ver que era por isso que havia menos desentendimentos. A nossa língua dá menos tempo para pensarmos do que as nossas mãos. Assim, as pessoas ponderavam mais sobre o que deviam dizer quando estavam com a caneta em punho.

Se contrapondo a escrita estavam as sobrancelhas. Se por um lado, ao escrever podia-se escolher com mais cuidado e calma o que se ia dizer, o movimento das sobrancelhas era tão ágil quanto o da palavra falada. Eram aqueles montinhos de pêlo sobre os olhos da onde, juntamente com as gargalhadas e lágrimas, transbordavam sua espontaniedade. Os habitantes do tal país conheciam melhor do que ninguém o poder das sobrancelhas.

Nesse país, não havia economia de sorrisos. Se fosse possível fazer uma equivalência, o sorriso seria o muito obrigado naquele país. Se alguém abria uma porta para um desconhecido, levantava no metrô para um senhorzinho se sentar ou pagava qualquer coisa com dinheiro trocado logo era recompensado com um sorriso. Não era algo que os pais precisavam ensinar para as crianças como o fazem aqui onde falamos. Não tinha essa história de palavrinhas mágicas. O sorriso era natural. Como não oferecer um diante das gentilezas dos demais habitantes?

Os abraços eram abundantes também. Sabe aquela sensação de ganhar um presente especial e não saber nem o que dizer para agradecer quem nos presenteou? Isso não existia. O negócio era logo apertar o outro e fazer ele se perder naqueles braços. A falta das palavras ditas fez com que se desenvolvesse tipos diferentes de abraço. Lá, os habitantes eram capazes de reconhecer o abraço que é para dar bom dia, daquele que desejava boa viagem do que era para pedir desculpas.

Outro dia, misteriosamente, as pessoas começaram a falar naquele lugar. Sabe do mais engraçado? Andam dizendo por ali que vão precisar inventar um dicionário todo novo para conseguir fazer o som falar tanto quanto consegue fazer o olhar.

segunda-feira, 22 de abril de 2013

De cara nova


Essa coisa de segunda-feira cinzenta não funciona aqui no Lentes Coloridas não! Para espantar a preguiça, começamos essa semana de cara nova e cheia de cor! Cara de quem já tem quase 50 posts e 5 meses de vida!


Obrigada por cada uma das visitas, dos comentários e do carinho! Obrigada também para a Nathelhou Productions que desenhou esse logo que tem tudo a ver com a gente!

Bora continuar vendo o mundo de um jeito colorido?

sexta-feira, 19 de abril de 2013

Certeza

E quando ele morreu tudo virou suas últimas palavras. Cada um dos queridos amigos ficava nostalgicamente retomando a última conversa, o último encontro e o último abraço. Falavam com carinho e lágrimas sobre os fatos que lembravam como sendo os derradeiros.

Muitos dos episódios que eram revividos vinham acompanhados de um comentário envolto em um sútil tom de premonição que era mais ou menos assim:

- Engraçado, parecia que ele sabia que ia morrer.

O jeito como disse que amava a irmã ao desligar a última ligação. A maneira como veio mostrar para a esposa aquela foto antiga do filho pequeno com os olhos cheios de saudades. O estranho desejo de comer brigadeirão, seu doce predileto, no último mês. A reconciliação com o pai com quem não falava fazia um tempo. A viagem para o Marrocos no semestre anterior que sempre foi um sonho. A tatuagem no braço, a coleção de discos de vinil, o presente para o filho. 

Por tudo isso, diziam que possivelmente ele sabia que ia morrer. Mas, afinal, o que fazemos na vida sem saber que vamos morrer? Por vezes, escondemos essa ideia por trás de um pensamento bom que invocamos rapidamente em nossas mentes para evitar o enfrentamento dela. Mas, sabemos. Na hora de escovar os dentes, na hora de embarcar no avião, na hora de uma entrevista de emprego, quando casamos, compramos um cachorro ou ligamos para reclamar da conexão da internet. Pode ser que não tão escancaradamente, mas sempre sabemos.

Foi quando alguém se deu conta disso que concluiram, deixando o enterro, que a vida, no fim das contas, é o conjunto dessas coisas que fazemos apesar de saber que vamos morrer. Perceberam que não se tratava do fato de que ele sabia que ia morrer e sim da certeza de que estava vivendo.

quinta-feira, 18 de abril de 2013

Andorinha

- Luiz? - disse como se a voz sorrisse ao telefone.

Apoiou o celular no ombro esquerdo enquanto procurava um guardanapo rabiscado dentro da bolsa. 

- Oi, aqui é a Luiza, sabe? A Luiza que trabalha com a Bárbara, tá lembrado? Isso mesmo, nos vimos naquele evento. Faz tempo, né? Que bom que o seu telefone continua o mesmo!

Acelerou a velocidade com que revirava a bolsa. O tom da voz suave e sorridente não combinava com os movimentos bruscos. Achou o papel.

- Estou te ligando para te convidar para falar em uma palestra que nós estamos organizando.

Abaixou os olhos para o guardanapo. Levou alguns segundos lendo as informações que passaria. A ligação ficou silenciosa.

- Oi, ainda tá ai? Então, vai ser no dia 23. Devem estar presentes umas 50 pessoas. Todas trabalham com TI também.

Levantou os olhos do guardanapo e olhou para frente. Um pássaro veio voando com as asas apressadas até que bateu na parede que via pela janela.

- É, isso mesmo! A sua fala teria uns 40 minutos, é suficiente?

O corpo castanho do passarinho caiu no chão. Se debateu uma ou duas vezes e parou. 

- Que ótimo que você pode vir! Claro, me passa seu e-mail que te mando as informações detalhadas. Só um segundinho.

O passarinho estava morto? Mãos na bolsa em busca de uma caneta.

- Pode falar! Ok, anotado. Nos falamos. Para você também! Beijos.

Desligou. Guardou o celular e encarou o defunto de andorinha no chão. Fitou ele por alguns instantes. Precisava ir. Mas, o que seria daquele passarinho? Olhou o relógio. Estava atrasada para reunião. Encarou o pássaro no chão mais uma vez. Poderia pegá-lo e enterrá-lo. Ou jogá-lo fora. O que se faz com um passarinho morto, afinal? Ninguém deve mesmo saber disso. Alguma hora, alguém resolveria. Talvez, alguém menos ocupado.

- Bárbara, ótimas notícias! Ele topou! - gritou voltando para o voo apressado e sem sentido que era a sua vida.

quarta-feira, 10 de abril de 2013

Flores

Um buquê de flores e o convite para imaginar quem irá, dentro de instantes, recebê-lo. O rapaz caminha aparentemente apressado na rua com aquele ramalhete todo enfeitado na mão. Na direção de quem será que ele está indo?

Pode ser que hoje seja aniversário da sua mãe. Possivelmente, esse seja um costume da família. Todo ano ele a presenteia com flores. A cada aniversário, uma flor diferente. Ou, então, pode ser que essa seja a primeira vez que o faça. De repente, se deu conta de que ela está ficando mais velha. Quantos aniversários mais será que vai ter? O tempo de comemorar eles e arrancar sorridos floridos dela é agora.

Talvez, seja para sua namorada. Pode ser uma data comemorativa na história do casal. Ou pode ser um presente simplesmente por estarem vivendo aquela história, desses que dizemos que é sem motivo especial, mas que, na verdade, vem transbordando razões para ser dado. Talvez, seja uma reconcialiação. As rosas vermelhas são a sua bandeira branca, seu pedido de trégua. No meio de tantas flores, seu orgulho se perdeu.

Há chance também de estar indo presentear alguém que não pode exatamente agradecer. Aquelas flores podem acabar, dentro de minutos, decorando algum túmulo de quem não está mais por aqui. Ao invés disso, podem terminar dentro de um vaso na sala como decoração para um jantar em que receberá seus amigos. Podem virar enfeite para o cabelo da irmã dele. Ou, ainda, pétalas espalhadas pela casa para um encontro com um amor.

São muitas possibilidades. E pensar que dentro de alguns dias essas flores já vão ter secado e morrido. As chances são tantas para uma vida tão curta das flores.

segunda-feira, 8 de abril de 2013

Poltrona de cinema

O filme parecia não evoluir. Sua trama era lenta. As cenas escuras como a sala de cinema cheia onde era transmitido. Os diálogos eram tão raros que era possível ouvir o som dos pacotes de pipoca sendo remexidos, do refrigerante quase no fim sendo perseguido no fundo do copo pelo canudo e, hora e outra, alguns sussurros entre os espectadores.

Ele olhou no relógio. Contando os trailers, tinham passado apenas 40 minutos desde que a sessão havia começado. Suspirou pensando na quantidade de minutos que estavam por vir. Talvez mais 1 hora? Talvez mais. Afundou a cabeça na cadeira procurando uma posição que, pelo menos, tornasse o resto daquela estada no cinema uma experiência confortável.

Nos instantes seguintes, reparou que muitos dos outros com quem dividia a sala pareciam tão agitados quanto ele. Possivelmente, buscavam aquele mesmo conforto que faria do resto do filme um tempo menos desagradável. Mas, se não estavam satisfeitos, por que não se levantavam e iam embora? Ora, todos são livres. Bastava pedir licença para quem estivesse nas cadeiras mais próximas do corredor e sair.

Alias, por que, então, ele mesmo não levantava e saía? É que vai que o filme melhorasse. E também, já havia mesmo gastado aqueles R$ 14,00 para entrar na sessão. Sem contar o valor que pagou pela pipoca e Coca-Cola. Ir embora assim significaria perder aquela quantidade de dinheiro. O melhor mesmo parecia ficar. Quem sabe se alguém levantasse ele não tomaria coragem também.

Os próximos 10 minutos foram ainda mais longos. Repassava os argumentos que usava para se convencer a ficar. Eles pareciam cada vez mais fracos. Mas, afinal, que mania é essa que temos de insistir em ficar quando podemos ir? Por que precisamos do aval alheio para tomar a atitude de deixar a sala? É como se o primeiro a levantar assegurasse aos demais que os chatos não são eles e sim o filme.

Então, analogamente, começou a perceber em quantas outras situações na sua vida insistia em filmes chatos ao invés de ir embora. Quando foi mesmo que esquecemos que podemos ir?

Respirou fundo, como se pegasse impulso para começar uma intensa corrida, pediu licença para a pessoa na cadeira do lado e deixou a sala de cinema. Quando fechou a porta atrás de si, se sentiu estranhamente livre.

quarta-feira, 3 de abril de 2013

Tempo


Desde quando aprendeu a ler as horas no relógio, uma pergunta começou a martelar em sua mente. Como um cuco que sistematicamente aparece de intervalo em intervalo, ele se pegava pensando sobre essa coisa chamada tempo. Os ponteiros se moviam como as peças de qualquer outra máquina o fazem. Isso não era prova suficiente para ele, antes mesmo de completar seus 10 anos, de que o tempo existia.

Falou de suas dúvidas com a professora. Com toda delicadeza, pediu para que ela lhe mostrasse o tempo. Ela, bastante experiente e cuidadosa, abriu o livro que trazia na sua bolsa em uma página que estava dividida em quatro partes. Em uma delas, havia um sol desenhado. Em seguida, uma flor cor-de-rosa. Depois, havia um gorro e um cachecol. E, por fim, uma árvore sem folhas. Falou das quatro estações do ano. Apresentou uma a uma e concluiu a resposta dizendo que essa era uma forma de ver o tempo. Com o passar dele, ano a ano, experimentamos cada uma dessas épocas. Pode ser que os meses sejam uma invenção do homem, mas as estações não o são. A cada três meses, independetemente de nossa vontade, elas se alternarão. São grandes indícios da passagem do tempo.

Ele ainda não estava convencido e, naquela noite, dirigiu a mesma pergunta ao pai. Sem hesitar, o pai pegou uma foto em que estavam os dois, pai e filho, no dia em que ele havia nascido. Lembrou a criança de que ele já havia sido daquele tamanho em que estava na foto. Os muitos centímetros a mais que tinha hoje eram sinais da passagem do tempo. Assim como os fios brancos que passavam a descolorir a cabelereira do pai.

No dia seguinte, foi com a mãe ao supermercado ainda pensativo. Para ele, esse era um de seus passeios preferidos. Adorava acompanhar a mãe por entre as prateleiras e escolher os produtos. Iam sempre no mesmo mercado e ele sabia onde encontrar cada coisinha. Naquela manhã, a tão conhecida loja estava diferente. Havia coelhos por todos os lados. Acima de suas cabeças, um céu todinho feito de chocolates. Ovos de todos os tamanhos e cores faziam seus olhos brilharem e a boca salivar. Visita a visita esperava aquele momento do ano chegar, a Páscoa. E, finalmente, ali ela estava.

Caminhando entre os chocolates se deu conta, de repente, do que afinal era o tempo. O tempo é essa espera por algo que amamos justamente por acontecer somente de tempos em tempos.

segunda-feira, 1 de abril de 2013

Guardanapo


Guardanapo é papel. Algumas vezes, pode ser pano também. Mas, na maioria das vezes, guardanapo é papel. Papel que limpa a boca e descansa no colo. Que sai borrado de batom ou de molho de tomate.


Mas, guardanapo é mais do que isso.

Tem vezes que guardanapo é caminho. Com uma caneta na mão, quem tem pressa desenha um mapa para quem procura algum lugar ou destino. Funciona que nem aqueles que os piratas usavam. Vai ver que no ponto de chegada exista algum tesouro também.

Guardanapo é jura de amor eterno. É estampa que combina com a toalha.

Guardanapo é passarinho É barquinho para quem espera e avião para o ansioso. Vira rosa e chapéu de marinheiro. Basta cair na mão de quem conhece origami ou dobraduras e pode ser o que quiser.

Guardanapo é cupido. É só escrever uma perguntinha e pedir para o garçom entregar para a moça bonita da mesa ao lado. Se vier com oito números na resposta, a flecha atingiu em cheio a mira. Dai é só dobrar ele com cuidado e deixar no bolso para quando a coragem bater apertar o send depois de digitar aquela combinação mágica no celular.

Guardanapo é passatempo. É obra de arte ou rascunho de desenho enquanto se espera o outro chegar. É ata de reunião em café.

Guardanapo é autógrafo de artista encontrado no hora do almoço. É lembrança daquele encontro, semanas depois quando encontrado no bolso do casaco.

No fim, guardanapo é papel. Mas, não papel de folha. É o papel que a gente der para ele.